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Salvando o Sudão do Sul

O Guarda Florestal

De perto, líder guerrilheiro do Sudão do Sul se revela sanguinário, calculista, vitimista e um nerd tarado por iPhone.

Todas as fotos por Tim Freccia

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Aqui em seu acampamento no meio do mato, Riek Machar - o ex-vice-presidente do Sudão do Sul, deposto e perseguido sob acusação de liderar um complô - é o centro das atenções, sentado em sua cadeira de plástico enquanto sua mulher, Angelina Teny, cozinha. Ao chegarmos, dei a ela um candelabro, um pouco de açúcar, uma variedade de temperos indianos e arroz, verdadeiros luxos na mata. Os temperos a intrigaram. “Gosto de cozinhar”, disse.

Mais tarde, Teny nos convida para jantar e serve perca-do-Nilo e tilápia apanhados no rio lá embaixo. Arroz com peixe, depois de uma entrada de sopa de peixe. Dei a Machar uma faca dobrável que eu mesmo fiz, mas ele está mais intrigado com seu novo iPhone e seu celular Thuraya SatSleeve. Lição número um: ele está mais para um nerd do que para um soldado.

Lição número dois: Machar gosta que as pessoas façam coisas por ele. Isso é evidenciado pela frustração crescente do fotógrafo Tim Freccia com sua inabilidade em ativar seu novo telefone. Tim deixa sua câmera de lado por um minuto e pega o telefone via satélite a fim de ligar para uma linha direta de serviço ao consumidor para que um técnico em Nairóbi possa fazer com que o novo aparelho de Machar funcione. Assim, chegamos à lição número três: executar uma revolução de acesso remoto requer uma mesa cheia de celulares Thurayas, acesso à internet e pilhas e mais pilhas de cartões telefônicos.

A cena engraçada à minha frente também é uma metáfora para o estado das coisas no Sudão do Sul: complexa e insustentável. Machar está mexendo em seus celulares Thurayas, mantendo contato com seus comandantes desertores e procurando um sugar daddy para sustentar sua última guerra civil. Não sobraram muitos simpatizantes endinheirados. Nos dias de hoje, visionários ricos que conhecem a arte de extrair lucros das calamidades são uma verdadeira raridade. Tiny Rowland morreu em 1998. O legado do Gaddafi equivale a um corpo que foi arrastado pelas ruas por seus antigos súditos, sua cabeça e seu traseiro para fora só para ter certeza de que as pessoas estavam entendendo a mensagem. Nimeiry partiu faz tempo, apesar de sua declaração da sharia ainda assombrar o Sudão e o Sudão do Sul. E o tirano de Uganda, Museveni, está apoiando Kiir, o atual presidente do Sudão do Sul. Isso deixa-lhe de sobra uma única opção real: o presidente do Sudão (o do norte), de 70 anos de idade, Omar al Bashir.

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Um agitador certa vez acusado pelo Tribunal Penal Internacional de desviar US$ 9 bilhões em fundos do Estado, Bashir ajudou a negociar o Acordo de Paz Global de 2005 para colocar suas mãos no petróleo do sul. Menos de uma década depois, Machar chutou o pau da barraca, prometendo fechar os campos petrolíferos se suas exigentíssimas demandas não fossem atendidas. Não é de surpreender que um número significante das ligações em que ele se afasta para fazer sejam em árabe.

Machar passa o dia sentado em seu uniforme impecável, debaixo de uma árvore nesse lugar pacífico, fazendo piquenique com alimentos tirados do rio e vivendo sem dinheiro. Nesse cenário, ele assemelha-se mais a um guarda florestal benevolente do que a um raivoso líder rebelde no exílio. A natureza sossegada de garças, pelicanos, cegonhas, patos e águias-pescadoras africanas à distância faz parecer que a missão dos rebeldes é proteger a beleza imaculada do interior, com o doutor Machar preenchendo o posto da mesa de informações (sua cadeira de praia) onde ele explica a história e a cultura do país a visitantes desinformados.

Embora seja cuidadoso em não atacar o presidente Kiir num nível pessoal, Machar pinta o líder do Sudão do Sul como um antigo soldado com TEPT (Transtorno de Stress Pós-Traumático), não tão esperto e frequentemente inebriado, que está enchendo o governo com seus subordinados enquanto rouba o país na cara dura.

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Ele, por outro lado, retrata a si mesmo como um acadêmico calmo, uma voz da razão similar à de Mandela, no meio de toda a insanidade. Machar nem vacila quando o pressiono em certas perguntas, muitas das quais desafiam sua autonarrativa de vitimização.

Então, por que ele está procurando repetir os horrores de 1991, quando suas ações enterraram seu país numa violência étnica gratuita e inanição em massa? Nesse ponto, suas frases de efeito são bem ensaiadas. Machar coloca a maior parte da culpa na corrupção de Kiir, afirmando que, enquanto presidente, ele provocou violência tribal e alienou a comunidade internacional.

O problema mais premente é que o Sudão do Sul está se aproximando rapidamente de um desastre total. A ONU estima que 3,7 milhões de pessoas vivendo lá correm risco de inanição, e dessa vez não há nenhuma boy band inglesa ou ganhadores do Grammy cantando músicas a respeito.

Riek Machar e sua esposa, Angelina Teny, são o perfeito casal de autoridade vestidos como marxistas, educados por ingleses e governantes rebeldes exilados na mata. Teny ama comida gourmet e Machar pode educar os visitantes com seu amplo conhecimento da história do Sudão do Sul. E, claro, entre pratos deliciosos tirados da região e discussões em nível de PhD, eles estão operando uma guerra brutal por sobrevivência.

Como um esposo ultrajado, Machar tem uma lista de exigências que têm de ser atendidas, se não… Ele expressou essas condições repetidamente por telefone via satélite em entrevistas a emissoras como BBC, Al Jazeera, Reuters, e por aí vai. O líder expressa choque e surpresa com essa situação consistentemente, como se a animosidade não-resolvida de longa data entre ele e Kiir fosse um desenrolar inexplicável. Também é claro que Machar está operando na crença de que seu inimigo de fato se importa com o que o ex-vice-presidente diz ou pensa. Sempre o intelectual, Machar elucida a necessidade de um “processo democrático” de algum jeito formando um consenso no meio do público que realmente culpa os corruptos. Ele parece ter se esquecido que o poder nesse país está perdido, e o ganhou por meio da força. E que já vive no mato há meses porque tanques passaram por cima de sua casa e quase o mataram no processo.

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Depois de chegarmos e nos assentarmos, converso com Machar sobre as circunstâncias em que se encontra. Na conversa ele é erudito e bem-humorado. Nosso primeiro papo vai tarde adentro.

Um acadêmico e arquiteto que ajudou a esboçar uma estrutura para um Sudão do Sul independente, Machar é um estudioso respeitado da história de seu país. Mas ele não sabe que eu sei disso, então me dá a versão Sudão do Sul for Dummies. De acordo com seu resumo simplista, as raízes das brigas atuais estão no estigma antigo de que o povo do sul está simplesmente destinado a ser escravo. A descoberta de petróleo em sua terra serviu como desculpa perfeita para o governo sudanês indiscriminadamente tirar os pastores dessas áreas.

Para ele, isso já passou. É chato. Irrelevante. Sua memória é seletiva, pulando reviravoltas desconfortáveis pelas quais passou para sobreviver. Não menciona as massas de crianças morrendo de fome, ou sua tentativa frustrada de destituir um de seus rivais, o capitão rebelde Garang, em 1991, ao chamar a BBC e simplesmente declarar que ele mesmo, Machar, estava doravante no comando. Ele só pode focar em uma coisa: na próxima guerra civil, que novamente atrapalhará a fundação de sua nação maltratada, além de apresentar o presidente Kiir como vilão e a si mesmo como o oprimido valente lutando por seu povo.

“Se houvesse paz no Sudão do Sul, acho que as montanhas de Juba e o Nilo Azul seriam parte do Sudão do Sul”, ele continua. “Acho que o norte se cansará de brigar. Eles estão naturalmente alinhados com o Sudão do Sul.”

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Esse cenário – no qual a paz é atingida apenas incorporando essas regiões ricas em petróleo sitiadas ao Sudão do Sul – aumentaria o fluxo de capital para este país ao mesmo tempo marginalizando o Sudão mais ainda. Mas parte do charme de Machar é que ele é pragmático. Ele coloca a culpa de grande parte da luta atual em expectativas despedaçadas.

“Você pode ver que eles não têm nada”, diz, mostrando o horizonte com as mãos. “As pessoas no estado petrolífero estão piores. Há um buraco sem fundo em Juba.” Ele explica que embora as vacas gordas da capital andassem em utilitários esportivos, apressando a desapropriação de terrenos e os acordos petrolíferos, a maioria do país viu pouca mudança. No entanto, Machar foi a muitas reuniões em Juba dentro de um utilitário esportivo, e muitas delas tinham a ver com petróleo.

Era para ser diferente, Machar me diz, acusando Kiir e seu governo de fazer promessas falsas que enrolaram o desenvolvimento necessário do país.

“Pelo menos 3% da renda deveria ter ido para as comunidades, e 2% para o Estado”, frisa. “O governador provisório assinou todos os acordos em Juba – acordos que ele fez com sua própria empresa de construção. Em Juba é decidido quem trabalha e quem não. Eu fiz campanha para um contrato local. A maioria do trabalho petrolífero é trabalho físico.”

“Essas pessoas podem ser treinadas”, salienta, acenando com a cabeça para as pessoas sentadas ao seu redor. “Mas tudo no setor petrolífero tem de passar pelo presidente.”

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E ajuda de fora? Negociações de terceiros?

Machar me conta que o trabalho humanitário sempre tem interesse político, seja retirar as pessoas de territórios ocupados por rebeldes ou alimentar um lado enquanto ignora o outro. “Os auxiliadores são muito políticos. A maioria fica sentada. Mas alguns partem pra cima.”

Durante toda a nossa discussão, o líder separatista retém um ar calmo de reconciliação. No início, ele é cuidadoso para não insultar abertamente ou levantar acusações contra Kiir, como fez para a imprensa em entrevistas por telefone via satélite de seu esconderijo na mata. Pergunto-me se ele espera que essa atitude de contornar sua opinião direta, somada a sua interpretação seletiva da história, fará com que eu endemoninhe o presidente por ele.

“John Garang me avisou sobre Salva Kiir”, diz. “Eles se dividiram certa vez, e foram precisos dias de negociações constantes para que entrassem num acordo.”

Pergunto se ele acha que sua insurgência será bem-sucedida. “Fui treinado por seu ‘Primeiro Grupo’”, diz, referindo-se a seu treinamento de combate conduzido há muito tempo pelas Forças Especiais dos EUA. Ele tem até uma cópia do Manual de Campo para Contrainsurgência do Corpo de Exército/Marinha Americano, embora seja uma edição antiga.

O Exército Branco é uma junção de tribais nuer sincronizados e motivados por seu objetivo comum de vingança e espólios.

Mas e então, Machar já voltou ao ponto de partida? Ele reverteu a rebelião?

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“Não sou um rebelde. Vejo-me como um governo legítimo. Estamos resistindo a Salva Kiir… Não estamos nos rebelando contra nada. Queremos democracia.” Ele mostra um sorriso com dentes espaçados. Machar quase consegue fazer uma outra guerra civil parecer divertido.

Pergunto quem está dando apoio a essas resistências. “Muitos”, ele responde. Então especifico mais: “Quem está dando apoio financeiro, político e militar?”

Ele insiste que não tem esse tipo de apoiadores, mas espera encontrar uma solução para esse dilema em breve. “Não há dinheiro. As empresas petrolíferas ou fecharam ou retiraram seus empregados. Meu pessoal é voluntário.”

Pela minha cabeça passa um pensamento: de que talvez tenha sido essa abordagem moderada, passiva-agressiva, de risadas e confusões para responder perguntas que fez com que Kiir finalmente ficasse maluco.

A  visão alegre e desdenhosa ainda não explica as 500 mortes, ou mais, de pessoas da etnia Nuer causadas por rivais dinkas, um dia depois do incidente com a tropa presidencial. Ele dissimula inocência e surpresa pela violência, embora tenha sido sua postura cada vez mais beligerante contra Kiir que engatilhou a ruptura. Ele sabia muito bem que a retórica do presidente estava espelhando os dias horríveis de 1991, quando Machar simplesmente se declarou líder do Sudão do Sul e forçou Garang a ir atrás dele, fugindo até a fronteira com a Etiópia, quando, em um pânico, se juntou a Cartum. A história parecia estar prestes a se repetir.

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“A maioria da violência foi contra os nuer”, destaca. “Eles foram de casa em casa matando pessoas. [Kiir] tem de responder por esses crimes. Ele quer ser um ditador, mas está numa democracia.”

Questiono se ele se sente como Joseph Kony, que foi governador de Jonglei sob o poder de Cartum mas que agora vive na mata, é demonizado pela imprensa e classificado como um inimigo por um governo reconhecido. Machar não vê nenhuma correlação.

“Encontrei com Kony muitas vezes. Ele é uma pessoa complexa beirando a paranóia. Forjei um acordo de paz quando ele entrou no Sudão do Sul em 2006, e Museveni deveria me agradecer por finalmente trazer paz à Uganda”. O líder não menciona que ele estava lutando pelos mesmos pagadores de Cartum que contrataram Kony para lutar contra Uganda.

 “Kony é como um gato. Às vezes ele assusta a si mesmo. Eu o conheci a 5 quilômetros da fronteira com o Sudão. Eu disse que falaria com Museveni. Levei dois caminhões de comida. Arranjei a reunião por meio de Vicent Otti (segundo comandante do Exército de Resistência do Senhor). Kony ordenou gravar Otti durante as conversas porque achou que ele estava sendo comprado”.

“Eu disse (a Kony): 'Você tem de concordar com não roubar. Não levar crianças, ou eu vou lutar contra você'. Dei US$ 25 mil a ele para comprar coisas para que não roubasse. E talvez também para corrompê-lo um pouco com coisas do Ocidente”, ele ri. “Encontrei-o muitas vezes. Ele concordou, mas, no fim das contas, voltou para a selva. Os americanos não o encontrarão na área – é muito densa. É uma falha da tecnologia de seus drones.”

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Machar convenientemente esquece de mencionar que foi sua aliança com Kony que levou o Exército de Resistência do Senhor ao Sudão do Sul. Ou que foi citado em 2008 dizendo que os US$ 25 mil que deu a Kony foram fornecidos por Kiir.

Nossa conversa é interrompida constantemente pelo soar de ao menos quatro celulares Thurayas ao seu lado, e esses são às vezes interrompidos por ligações entregues a Machar por seus subordinados. Ele parece confortável demais em seu papel – um joker que, quando posto sobre a mesa, resultou em violência e dificuldades dramáticas.

Na noite fresca, é claro para mim que Machar está feliz em seu papel. Ele está no comando, fazendo acordos e olhando em direção ao norte para os campos petrolíferos vulneráveis que ficam em terra nuer. Sabe que o Sudão precisa se desprender da visão direcionada ao sul do Kiir e encontrar um novo líder que assegurará que o petróleo seja transportado até o norte.

Ao chegar o crepúsculo, os aldeões e os refugiados queimam grama. Patrulheiros rebeldes que estiveram nos campos o dia todo surgem de volta ao acampamento. O fogo crescente eleva uma fumaça cinza. Na distância, no norte, está o enorme brilho vermelho-alaranjado do horizonte não desenvolvido. O Sudão do Sul está literalmente e figurativamente pegando fogo. Dormimos bem.

Alvorada no campo rebelde. O vago brilho vermelho de fogo no mato se mistura com o som de pessoas cozinhando, risos e o ruído de rádios de ondas curtas.

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Logo antes do amanhecer o acampamento fica cheio de vida. Os soldados batem seus lençóis, escovam seus dentes e dobram colchonetes. Pequenos fogos para cozinhar são acesos e homens limpam a área para tomarem seus desejuns de sorgo e chá. Por volta das 9 horas, rádios de ondas curtas estalam na distância e são sintonizados ao noticiário de Juba. Esta cidade não tem problema nenhum em inventar notícias. Assim como Machar, o governo não tem restrições em contar aos jornalistas ocidentais relatos adaptados sobre o passado e o futuro do Sudão do Sul.

Machar está de volta à sua cadeira de praia, sentado a uma mesa de plástico de onde faz ligações com seus celulares Thurayas. Sua esposa, Teny, nos serve café-da-manhã de abóbora cozida e chá doce. Ela está acostumada a tomar conta de soldados e parece contente cumprindo esse papel. Mulher moderna educada em Londres, ela aprecia os elogios à sua comida.

Continuo com minha linha de perguntas de ontem. Machar me diz que o vice-presidente americano, John Kerry, e a assessora de segurança nacional dos EUA, Susan Rice, recentemente lhe telefonaram para pedir uma solução diplomática com Kiir. Essas tentativas de negociações de paz permitiram a Machar enrolar. Ele precisa de armas, balas, combustível e pessoal. E necessita de uma vitória para mostrar que ainda tem poder. Assim como nos dias remotos, planeja atacar Malakal, o portão para Juba, junto ao Nilo. Ainda mais crítico à sua missão, o petróleo está na sua terra natal étnica. É só pegar o óleo combustível que o governo do Kiir perderá força e acabará. No entanto, o Machar ainda fala do petróleo como sendo “do povo”.

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“Estamos tentando superar essa dependência de ajuda. O petróleo gera US$ 2 bilhões ao ano, e há 13 milhões de pessoas aqui. Numa produção a todo vapor, haverá muito mais.”

Um vento seco e quente sopra, empurrando a poeira pelo chão árido. Machar decide mudar o acampamento para uma área mais verde perto do rio, e fazemos uma pausa na nossa conversa sinuosa. Querendo uma perspectiva local sobre os assuntos que nós temos explorado, pergunto ao Amos, de 27 anos, sua opinião sobre minhas idas e vindas com o antigo vice-presidente.

Uma das grandes jogadas que o Kiir teve no início da rodada atual de escândalos foi demitir o Taban Deng Gai, antigo governador do estado Unidade, o porta-voz oficial de Machar (aquele que Machot nos preveniu não consultar), chefe de Amos, nosso militar da reserva e motorista. Ele é o mesmo Taban Deng Gai que, numa vida passada, supervisionou os interesses dúbios do SPLA num acampamento onde Machot foi colocado enquanto pequeno órfão. Teny já foi inimiga implacável dele na corrida pelo governo dessa área saturada pelo petróleo. Machot está relacionado a ele. Amos é seu guarda-costas. A vasta área da África pode ser um lugar muito pequeno às vezes. Inimigos se tornam aliados, e vice-versa.

Amos, agora a anos luz de tentar completar sua missão, descreve a vida de Deng Gai como governador do Estado Sudanês de Unidade, que é rico em petróleo, baseado em Juba. “O Taban tem quatro Escalades. Um é blindado. Ele também tem quatro Suburbans. Ele tem uma Lamborghini azul que foi presente de um empresário sino-americano que disse ter empresas em 97 países.” Ele nem dirige o Lamborghini. Simplesmente não há estradas para além de Juba.

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Amos acha que tudo isso faz parte. “Quando você vem de fora, você dá presentes. Se você não dá presentes, fica por sua conta. Os que dão presentes recebem presentes. Esse é o jeito africano.”

Ele sucintamente resume o que ele acredita ser o problema principal na política de seu país: “Todo o dinheiro pertence aos nuer. Os dinka não têm nenhum estado com petróleo. Daí eles nos matam.” Quando lhe pergunto o que ele quer dizer com “matam”, responde-me: “Eles foram até a Universidade de Juba, arrastaram os nuer que tinham marcas em suas testas para fora. Eles os arrastaram pelas ruas, alinharam-nos e atiraram neles. Eles te fazem perguntas na língua dinka, e se você não souber responder, atiram em você.”

Depois de conversar com Amos, noto que Machar está em uma ligação longe da multidão. Está falando em árabe e parece mais animado e contente do que normalmente, seus gestos são de alguma forma mais otimistas. Continuo a observar enquanto seus guarda-costas me olham de cara feia.

Considerando todas as armas novinhas em folha nas mãos dos homens do Machar, começo a me perguntar se Cartum voltou ao negócio de dividir e conquistar. Machot me diz que o governo sudanês está fazendo lançamentos aéreos de munição para os rebeldes de Machar em Akobo, uma alegação que foi compartilhada com ele em suas numerosas trocas por telefone via satélite com comandantes de fora de Bor. Talvez seja por isso que pouco depois de pousarmos no Sudão do Sul vimos homens atirando com suas armas para testar e ter certeza de que os canos ainda estavam bons depois do impacto da queda. Também pode ser o porquê de pequenas unidades equipadas com cintos de munição novinhos e completamente cheios estarem sendo treinadas na distância, do outro lado do rio. Eles posaram para Tim com orgulho com suas armas, algumas das quais tinham seus números de série apagados.

Pergunto a Machar sobre as armas, o que as torna ainda mais interessantes quando ele indolentemente especula que Cartum não tem razões para armar os nuer, porque isso sabotaria a participação do Sudão nas rodadas atuais de negociações de paz. Mas essa negação vaga do apoio do país não faz nada para negar a antiga aliança do líder separatista com o governo lá no norte, uma aliança que resultou num derramamento de sangue de pessoas cujas liberdades ele certa vez alegou ser sua missão.

Mais tarde, tiro foto de Machar em sua cadeira de praia, dando umas pescadas. O homem gosta de um cochilo. Seu guarda-costas lança uma pedra em mim, e o líder se assusta. Seus olhos se abrem, e ele faz sinal para seu guarda-costas ir embora, voltando a dormir enquanto uma cabra examina o chão debaixo de sua cadeira.

Continuando nossa conversa, tento tornar a coisa pessoal. Falamos sobre tristeza e o passado. Machar me diz que a última vez em que ele e Teny choraram foi em 20 de julho de 2005, quando viajaram a Bor para celebrar o sexto aniversário da morte de Garang.

A jornada para Bor se tornou uma apologia emocional ao 15 de novembro de 1991, data do assassinato de 2 mil pessoas na região, a maioria delas dinka. Também havia uma raiva residual por causa da violência étnica sem restrições engatilhando a fome que se seguiu, que tirou a vida de um número ainda maior de pastores dinka.

A viúva de Garang, Rebecca Nyandeng, organizara o encontro. Ela fora uma crítica de longa data da decisão de Machar, em 1991, de se separar de seu marido para lutar junto com o governo de Cartum.

No que Machar e Teny estavam de pé do lado de fora da casa do falecido Garang, o vice-presidente, que normalmente exibe sorrisos, caiu em lágrimas. “Eu deveria tomar total responsabilidade pelos eventos de 1991”, ele disse. Teny também soluçou profundamente quando a multidão começou a lamentar.

O que Machar não falou naquele dia ou durante minha visita foi da relação com os líderes do Exército Branco – homens que confiam nos conselhos de deuses, e não em um celular Thuraya para tomar suas decisões. Esse tropel violento e imprevisível recentemente se reagrupara sob o comando de seu líder e estava se preparando para a batalha.

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Traduzido por: Julia Barreiro