notorious big ready to die anniversary
Música

O desespero avassalador de 'Ready to Die' do Notorious B.I.G

Vinte cinco anos após seu lançamento, o maior legado do álbum é a intuição de Biggie sobre o seu futuro.
HF
ilustração por Hunter French
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Num momento no meio de Ready to Die, Notorious B.I.G começa a parecer um palestrante motivacional de rua. O primeiro verso de “Everyday Struggle” é “Sei como é acordar fudido”; dá pra imaginar o microfone do estúdio, ouvir os moleques rindo do palavrão. Big se solidariza com o público. Ele entende porque eles estão tão estressados, sabe o peso de acordar e sentir o espectro dos boletos a pagar. “Eu me lembro quando eu era igualzinho a você”, ele rima. Ele não queria um diploma, ele queria grana. Então ele fez esse corre – desde as endolas em Bed-Stuy até levar as cargas grandes pra Raleigh. A história tem um arco que geral pode se identificar, acenando pra redenção e desembocando na sagacidade.

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Mas não é só isso que o Big traz. O segundo verso da música termina com os amigos dele assassinados ou presos, o terceiro com ele aterrorizado, resignado a travar uma guerra com a polícia que sabe seu primeiro nome. O único momento em que ele exala algo parecido com alegria é quando ele rima sobre escapar de uma acusação de agressão. O refrão é o fundo do poço dessa viagem ao clima ruim: “Eu não quero viver mais”.

A morte sobre a qual Big rima em seu álbum de estreia – aquela a que ele sucumbe no final – não é a morte mítica que Tupac parecia cortejar em seus próprios discos. Big chega a esse ponto mais tarde: a última música de Life After Death se chama “You're Nobody ('Til Somebody Kills You)”. Mas em Ready to Die, o fatalismo não é elevado ou desafiador – muito menos mítico. É pequeno, feio e inevitável. Na canção final, antes de puxar o gatilho, ele diz que não quer ir pro céu, porque Deus provavelmente não vai deixar ele ficar na cama o dia inteiro.

Ready to Die foi gravado em dois períodos diferentes. Na primeira sessão, Big era um moleque voraz que tinha assinado com a Uptown Records através de um jovem A&R chamado Sean Combs. Em suas primeiras demos, Big tinha um timing quase sobre-humano, um carisma que sangrava pelo microfone, uma intuição de como fazer uma palavra ou frase parecer musculosa, ameaçadora ou algo saído de um programa humorístico de rádio. Mas durante 1993, ele rimava num registro ligeiramente mais agudo do que você lembraria por “Hypnotize”, parecia que ele estava procurando pelas bordas mais esfiapadas de sua voz. Ele inquestionavelmente estava no controle, mas num tipo diferente de controle. Esse momento é quando Big gravou músicas como “Gimme the Loot” – uma pequena e intrincada obra-prima que soa, vocalmente, como um dueto com uma versão mais maníaca dele mesmo.

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Essas músicas de 1993 são repletas de crime – crimes pequenos, crimes violentos, crimes que não são catalisadores de algum crescimento pessoal ou que colocam a narrativa em movimento. É o tipo de crime que existe porque homens famintos precisam comer. Crimes brutais (como a anedota infame sobre roubar um colar “#1 MOM” de uma grávida em “Gimme The Loot”) e até constrangedores (roubar um trem porque a mãe não o deixava andar com dinheiro). Ele rima animadamente sobre essas coisas. Ele é vívido, detalhado, podendo ser malicioso ou histericamente engraçado. Ele conta exatamente onde guarda a Mac-10 no Land Rover. Como um todo, essas vinhetas pintam a vida de Big como perigosa e materialmente difícil. Elas também mostram o dom incrível dele para narrativa: nenhuma história tem o mesmo ponto de entrada ou saída, o mesmo mecanismo para fazer os personagens interagirem, a mesma energia. “Loot” tem um amigo insano que se gaba de “roubar filhos da puta desde os navios negreiros”, enquanto “Warning” joga com uma série de rumores, filtrados por ligações cortadas em telefones fixos talvez grampeados.

A primeira rodada de sessões acabou quando Combs foi demitido da Uptown. Isso jogou Big num tipo de purgatório onde muitos trabalhos em desenvolvimento acabam perdidos pra sempre. Foi aí que ele foi pra Raleigh, fazendo seus corres ilícitos por lá. Seus amigos na cidade o conheciam simplesmente como “Fat Chris”. (Big mais tarde cantaria em “Everyday Struggle” sobre fazer viagens para o sul com ajuda de carros baratos conseguidos na “Toyota Dealathon”.) Mas claro, Combs intermediou um acordo com a Arista para lançar seu próprio selo, Bad Boy, e começou a se metamorfosear na visão que ele chamava de Puff Daddy. Em 94 ele arrastou Big de volta para o norte para terminar o disco. Foi aí que a voz de Big ficou um pouco mais grave, um pouco mais rouca, sua rima mais suave e mais contida. Combs/Puff também estava deixando sua ambição correr solta: o ato de atirar em policiais na “Machine Gun Funk” não precisaria ser contrabandeado pro rádio, porque ele colocaria o Big rimando em cima de Mtume e Isley Brothers mirando diretamente as paradas de sucesso.

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O que dizem sobre essas sessões de gravação é que Big se incomodou com o direcionamento mais comercial, mas no disco ele soa completamente comprometido: “Juicy” consegue ser pra cima ao mesmo tempo em que é dolorida, da satisfação pueril em poder pagar uma conta de telefone de US$ 2 mil, dos brincos caros que ele dá para a filha, até o jeito como ele diz pra mãe “sorria toda vez que minha cara aparecer na The Source”. O som pop obrigatório enfiado no meio dum disco de rap dessa época em geral era só isso mesmo – o som obrigatório pras rádios, uma concessão. Essa parece ter saído direto das veias de Big.

Mesmo assim, no contexto do disco, as duas músicas podem muito bem ter vindo como uma espécie de fuga, separadas do ciclo de terror em que Die se baseia. (“Foi tudo um sonho” não podia ter um tom mais sombrio.) Onde a primeira leva de músicas era equilibrada pelos rap sexuais diabólicos de Big (“Friend of Mine”, a original “One More Chance”), “Poppa” e “Juicy” soam vindas dum homem do outro lado de uma divisão intransponível. O Biggie de “Gimme the Loot” não iria nem fudendo num wine bar. Se liga na sequência. Logo depois de “Big Poppa” vem “Respect”, onde descobrimos que Big nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço, depois de “Juicy” vem “Everyday Struggle”. Ninguém aqui foi iludido que existe alguma saída.

Ainda assim, Ready to Die terminava com uma cortina de fumaça: o DJ Premier vendeu a batida de “Unbelievable” para Big por US$ 5 mil só, porque eles já tinham estourado o orçamento e esse foi o último som antes da masterização. Method Man – um dos maiores rappers dos EUA na época – recebeu só metade disso por sua contribuição em “The What?”, e teve que correr atrás de Puff para conseguir ser pago. Tem também a famosa história de como roubaram a ideia de uso de sample em “Juicy”, que Pete Rock acusou Puff de ter ouvido em sua casa, aí fez sua equipe recriar mais barato. Mas o dinheiro entraria logo e todo mundo seria pago: Puff previu corretamente um futuro luxuoso para ele e seu astro.

Mas o lance importante e diferente no disco de estreia do Biggie é que, tirando os dois singles mencionados acima, ele não soa como o desejo dessas mansões e Mercedes. Na real, leva o ouvinte pra bem longe disso aí. Na famosa música de encerramento, “Suicidal Thoughts”, ele afirma que sua mãe – aquela que abre um sorrisão quando vê ele na The Source – não o ama mais, e certamente se arrepende de não ter feito um aborto. Seja porque ele já roubou grana até da bolsa dela, ignorou seus pedidos para sair das ruas e da vida do crime, e até gritou, em certo ponto: “Que se foda o mundo / Que se foda a minha mãe e a minha mina”. O que “Suicidal Thoughts” deixa cuspido e escarrado é que Ready to Die é um produto do medo e do desespero que são tão esmagadores quanto autossuficientes – tão poderosos que mesmo seu maior documentarista não ousaria reivindicar vitória sobre eles.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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