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Saúde

O dia em que a minha namorada se esqueceu de quem eu era

Numa manhã de Natal, falou-me pela primeira vez do seu Transtorno de Identidade Dissociativa.
mulher em imagem pixelizada
Imagens por Marf Duffy

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

Naquele momento, a situação não poderia ter sido pior. Um homem encurralou uma mulher, que estava aterrorizada e não parava de chorar, no hall de entrada de um edifício e não a deixava sair. Se alguma pessoa tivesse entrado naquele momento, a mulher diria que o homem era um completo desconhecido e que não tinha ideia de como tinha ido ali parar.

Essa terceira pessoa deduziria – com bastante razão – que aquela mulher tinha sido drogada pelo homem e tentaria resgatá-la, desse por onde desse. Provavelmente chamaria a polícia, ou dar-lhe-ia um valente soco. Ao fim e ao cabo, estava claro que o homem planeava violar aquela mulher. Não há quase nenhuma razão que pudesse desculpá-lo. Quase nenhuma.

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Todas estas possíveis interpretações passaram pela minha cabeça e eu rezei a um Deus em que, naquele momento, decidi acreditar. Rezei durante todo o tempo que ali estive com a minha namorada, em pleno episódio de dissociação grave, para que não aparecesse ninguém. Deus, se estás a ler isto: devo-te uma.

Numa manhã de Natal, enquanto estávamos deitados na cama, falou-me pela primeira vez do seu Transtorno de Identidade Dissociativa (TID). Saíamos juntos há oito meses e ela tinha sido sempre honesta comigo. Em relação a tudo (menos isto). Acho que o facto de que pudesse chocar-me não a preocupava, mas creio que quis primeiro certificar-se que podia confiar em mim, a ponto de partilhar comigo algo que mais ninguém sabia.

"Assim que saímos do prédio ela pôs a sua mão sobre a minha. 'Promete-me que aconteça o que acontecer não largas a minha mão', disse-me".

Explicou-me resumidamente: no pior cenário possível, não só poderia ter dificuldade em reconhecer-me, como também em saber quem ela própria era. Ou seja, poderia ser incapaz de assimilar o conceito da sua própria identidade. Para ela foi um bocado duro falar sobre este tema, o que pode ser a razão para que tão poucas pessoas conheçam este problema. Para o seu bem próprio bem decidi não fazer muitas perguntas, nem pressioná-la sobre o assunto. Quando acabámos a conversa disse-lhe que nada tinha mudado e que continuava a amá-la. Quatro meses depois presenciei, pela primeira vez, aquilo que me tinha descrito.

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Tudo aconteceu uma noite, enquanto víamos um filme na casa de um amigo. Mais ou menos a meio do filme notei uma alteração na sua respiração, ficou acelerada, quase ofegante. Não me preocupei muito, porque sabia que tinha sofrido ataques de ansiedade graves antes de nos conhecermos e que conseguia superá-los sem grande dificuldade. Acariciei-lhe as costas e os ombros para tentar acalmá-la, mas percebi que o pânico que sentia ia crescendo. Vinte minutos depois, sussurrou-me: "Temos de ir embora. Estou a ponto de sofrer uma dissociação".

Pegámos nas nossas coisas e pedimos desculpa aos anfitriões, dizendo que estávamos exaustos e cheios de sono. Assim que saímos do prédio ela pôs a sua mão sobre a minha. "Promete-me que aconteça o que acontecer não largas a minha mão", disse-me. Disse que sim.

Enquanto caminhávamos pude ver como o seu transtorno se manifestava, mais e mais. Começou a não reconhecer o que estava à sua volta. Decidi chamar um táxi. Tive vários golpes de sorte durante aquela noite e este foi o primeiro.

Por mais trivial que possa soar, o silêncio era aterrador. Ela fazia com que o mais extrovertido dos gajos parecesse o J.D. Salinger ao seu lado. Era capaz de ter as conversas mais descontraídas e airosas com o mais carrancudo dos porteiros de discoteca, até que este deixasse entrar todos os seus amigos (menores). Mas, naquele momento, estava assim, sentada, a olhar pela janela. Pela primeira vez em toda a nossa relação ficou muda.

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Apertei-lhe a mão e disse: "Amo-te". Ela olhou-me durante uns segundos, com um olhar ausente e virou-se para a janela. Sabia que não podia levar a mal e tentei racionalizar. No fim de contas, não é que estivesse chateada comigo. Simplesmente não sabia quem eu era. Quando me lembro disso agora, parece um bocado egoísta da minha parte pensar que, por um momento, aquela experiência me afectava – a mim. Mas era inevitável. A situação era profundamente perturbadora.

"Apesar de estarmos dentro do seu edifício, tudo era desconhecido. Mesmo sabendo que estava a sofrer uma dissociação, não tinha a menor ideia de como é que tinha ido ali parar".

Aos olhos da mulher que amava, eu não passava de um estranho. Senti-me desamparado. Os últimos 10 minutos da viagem decorreram sem qualquer incidente. Estava tranquila, apesar do profundo terror que se apoderou dela - o que eu agradeci (num acto de egoísmo, talvez), pois não queria explicar ao taxista os pormenores de um transtorno sobre o qual, no fim de contas, não sabia absolutamente nada. Quando parámos, em frente à sua porta, vi que tinha o dinheiro certo para pagar. Outro pequeno, mas glorioso, golpe de sorte.

Abri a porta do táxi e, tentando não soltar-lhe a mão, consegui sair puxando-a para mim. Atravessámos a rua, passámos o pátio e entrámos no hall de entrada do edifício. Foi aí que as coisas começaram a complicar-se.

Acho que até ali, talvez por estarmos em público e na presença do taxista, ela sentia alguma segurança. Mas agora, estava apenas com um homem que, segundo ela própria, nunca tinha visto mais gordo. Além disso, apesar de estarmos dentro do seu edifício, tudo era desconhecido. Mesmo sabendo que estava a sofrer uma dissociação, não tinha a menor ideia de como é que tinha ido ali parar. Era como tentar levar alguém completamente mamado até casa, mas num nível muito mais extremo.

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Imagina a situação: uma mulher, relativamente pequena, apercebe-se, de repente, que está num edifício com um gajo que não conhece e que é muito maior que ela. Fez o que qualquer mulher faria naquela situação. Largou-me a mão e correu em direcção à porta. A minha reacção instintiva de correr atrás dela surpreendeu-me. Agarrei-a pela cintura e levei-a, em ombros, na direcção contrária à porta.

Medir forças com uma mulher angustiada não é a melhor maneira de fazê-la sentir-se segura, mas não tive outra alternativa. Se a tivesse deixado fugir pela rua, a meio da noite, provavelmente não saberia para onde ir e poderia pôr a sua vida em perigo. Pousei-a numa das esquinas do corredor e fiquei ali parado, entre ela e a porta. Levantei as mãos e, numa espécie de gesto universal, disse suavemente "Está tudo bem, a sério".

Ela encolheu-se. "Se dás mais um passo, grito", avisou-me. Não mexi nem um dedo. Foi aí que comecei a imaginar todas aquelas situações. E, como já disse, um golpe de sorte, ou às tantas uma intervenção divina, quis que ninguém passasse ali naquele momento. Ainda que fosse uma grande ajuda, não mudava o facto de eu estar ali de pé, com uma rapariga que não sabia quem eu era e nem sequer me deixava levá-la a casa.

"Pôs em alta voz. Em voz baixa e entre lágrimas, a única coisa que conseguia dizer era 'ajuda-me'".

"Tens aí o teu telemóvel, não tens?", perguntei-lhe. Ela olhou para dentro do bolso e disse que sim. "Sabes quem é o George?". Disse que sim, outra vez. O George era um ex-namorado, um dos seus amigos mais antigos e a única pessoa - tirando a sua família, o seu médico e eu -, que conhecia o seu transtorno. Como ele tinha estado na sua vida mais tempo que eu, lembrava-se melhor dele. "Liga para o George", disse-lhe. "Isto é uma cena completamente normal", pensei, enquanto a minha namorada procurava o nome de George no seu telemóvel. Sou um gajo, que está aqui, de pé, a pedir ao ex da minha namorada que lhe lembre que eu existo.

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Pôs em alta voz. Em voz baixa e entre lágrimas, a única coisa que conseguia dizer era "ajuda-me". Umas 10 vezes. Ele poderia estar no trabalho. Poderia demorar horas para que visse o telemóvel e respondesse. E aí chegou o nosso último golpe de sorte: George devolveu a chamada uns segundos depois. Não me lembro o que disseram exactamente, ou durante quanto tempo falaram. Não sei se foram cinco segundos, ou cinco minutos. Ela disse que estava ali um gajo que não conhecia e que dizia ser o seu namorado. E eu, com uma espécie de sussurro em jeito de grito, disse: "George! Sou eu!".

Ela ficou a falar com ele e depois passou-me o telefone. "Quer falar contigo". Falei com o George durante uns minutos. Nunca tinha ficado tão feliz por falar com o ex da minha namorada. Ele explicou-me, tranquilamente os passos a seguir: levá-la ao seu apartamento, fazer com que se sentasse e pôr alguma cena que tivesse visto antes, no Netflix, por exemplo. A familiaridade é a chave, disse-me. Agradeci-lhe, e devolvi o telefone à minha namorada. Falaram durante uns segundos e depois ela desligou.

"O George disse que posso confiar em ti".

Peguei na mão dela outra vez, e levei-a em direcção às escadas. Quando chegámos a casa, as coisas melhoraram. Fechei a porta e ela sentou-se de imediato no chão de madeira e disse-me que lhe doíam os pés. Ajudei-a a tirar os sapatos e puxei-a, antes de levá-la para o quarto, para mostrar-lhe as fotografias coladas na parede e perguntar-lhe se reconhecia as pessoas que lá estavam. "Essa sou eu!", disse, felizmente. "E este é o George!". Isto ajudou bastante.

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Uns minutos depois a dinâmica da nossa relação transformou-se. De atacante passei a ser, estranhamente, o seu pai. E como namorado estas opções eram bastante desconcertantes. Mas, pelo menos com a segunda ela não se sentia tão assustada. Estivemos a ver televisão durante o resto da noite, enquanto eu esperava que a rapariga que amo regressasse.

Umas horas depois de me ter falado da sua doença pela primeira vez, dediquei algum tempo a ler sobre o Transtorno de Identidade Dissociativa. Como acontece com muitas doenças mentais, existem bastantes especulações e teorias à volta do problema, o que é bastante compreensível quando te apercebes do quão labiríntica e complexa é a mente humana. E não é de admirar que o TID seja considerado "o mais debatido de todos os diagnósticos psiquiátricos", no qual não "há consenso quanto a diagnóstico, ou tratamento".

É uma doença pouco comum, mas bastante conhecida dentro da cultura popular. Se ainda não tinhas ouvido falar do TID (como eu), é provável que o conheças como "transtorno de personalidade múltipla". As suas representações na ficção são bastante prejudiciais, porque o retratam como a luta do bem contra o mal, tipo doutor Jekyll e Mr. Hyde. O mesmo acontece com a esquizofrenia e outras doenças mentais. Os doentes são considerados sociopatas assassinos, quando, na verdade, são eles os mais vulneráveis.

Muita gente que sofre de TID diz ter sido vítima de agressões físicas, ou sexuais quando era criança, o que levou vários investigadores a acreditar que o TID é a reacção a um trauma. Eu sabia que o pai da minha namorada a tinha agredido algumas vezes e é muito provável que este episódio tivesse alguma coisa a ver com o seu transtorno actual. Outra hipótese sugere que o TID é causado pelas memórias que os psicólogos "recuperam" e que provocam mudanças no comportamento dos pacientes, mas este não é o caso da minha namorada.

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"Quando finalmente fomos para a cama, ela adormeceu num instante: estava física e psicologicamente esgotada".

No seu caso, os episódios ocorriam esporadicamente. Podia estar meses sem sofrer nenhum. Mas também podia acontecer várias vezes num período de tempo relativamente curto. Quase sempre em alturas de maior stress. Alguns dias depois disse-me que os episódios dissociativos aconteciam, precisamente, quando o seu cérebro era incapaz de lidar com o stress e, basicamente, procurava separar-se do seu corpo por breves instantes.

Três horas depois, pude ver alguns rasgos da sua personalidade a reaparecerem. Reconheceu o seu personagem favorito e um grande sorriso iluminou o seu rosto. Alguns minutos depois perguntei-lhe se sabia quem eu era. "Eu conheço-te", disse-me. "Amo-te". Significou muitíssimo ouvir aquelas palavras.

Quando finalmente fomos para a cama, ela adormeceu num instante: estava física e psicologicamente esgotada. Acordou na manhã seguinte sem se lembrar do que tinha acontecido. Eu fiquei acordado durante mais algum tempo, a pensar se existirá algo mais aterrador que a mente humana.


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