Todos os meses chegam aos escritórios da VICE discos cujas reviews vamos adiando indeterminadamente, porque há muito para ver no tumblr da Isa Pólvora ou muitos jogos de ZX Spectrum para experimentar nos emuladores. Mas, já com o final do ano no horizonte, o início do mês de Outubro foi o momento ideal para declarar morte ao ócio e escrever até suarmos notas musicais pelas axilas. Metemos a mão aos discos que por aqui estavam meio-esquecidos e a verdade é que demos de caras com algumas das melhores cenas que ouvimos ultimamente. Aqui ficam eles para que vocês se entretenham e as nossas secretárias fiquem um pouco mais organizadas. Sim, sorrisos para todos os discos. Somos uns bacanos.VÁRIOSBigfootBass Works RecordingsBass Works Recordings pode até não ser o nome mais original para uma label focada em música de dança, mas tudo o resto, nesta casa japonesa, compensa essa mesma falta de ideias aquando do baptismo. Reunindo os esforços de Sugiurumn, Nao Nomura e Osakaman (este último deve ser de Osaka), a Bass Works existe sob a premissa de a cada quarta-feira lançar, através da sua mailing list, umas poucas faixas. O que acontece muitas vezes, neste fluxo de faixas, é encontrarmos os três fundadores da editora destemidamente misturados com alguns dos produtores mais sonantes da house e techno japonesa. Visto que a matéria da Bass Works é essencialmente digital, o surgimento de uma compilação em formato de CD duplo não deixa de ser uma surpresa.Bigfooté, por sua vez, um título particularmente feliz para representar uma compilação de natureza rara em todos os aspectos. Neste carnaval de ritmos vindos de um Japão cada vez mais significante na exportação de música de dança, podemos encontrar produtores em puro estado de graça (Q’Hey e onomono) e uma remistura de MODERWARP para “Shadow Tiger”, de Phan Persie, que por si só é capaz de nos recordar do quanto adorávamos Orchestra of Bubbles, de Ellen Allien e Apparat. Mas isso é apenas uma amostra de um disco que está carregado de techno densa e com fumo a sair pelas narinas. MATompkins SquareForam necessárias décadas e algum golpe de sorte aliado a sentido de oportunidade para que os garimpeiros da Thompson Square pudessem, por fim, transportar o mito para a realidade. Este disco, mais que um álbum por si, é um artefacto vivo que agora recupera aquelas longas horas em que o adolescente Mark Fossom pegava na sua guitarra de doze cordas e partia para infindáveis e incríveis trips por uma América profunda. Escutando-o, tudo parece demasiado complexo e perfeito para vir dos dedos de um imberbe que possivelmente na altura nunca tocou numa gota de whisky ou saboreou seriamente o prazer de duas coxas abertas — isto porque toda a gente sabe que o blues e a country são essencialmente géneros compostos por estórias de vida dura, paixões e tragédias. Por outro lado, a música de Fossom reserva uma frescura espontânea onde as notas se compõem ao sabor da aragem junto ao alpendre enquanto se escuta o comboio lá ao longe na planície. Miúdo com espírito de homem que um dia convenceu um tal de John Fahey a gravar uma valiosa sessão para a sua editora. Toneladas de classe. NAANSWER CODE REQUESTCodeOstgut TonSe Berlim se instituiu como o berço da techno contemporânea, é natural que de lá também surjam novos caminhos e aventuras para um vírus em permanente evolução. Afiliado ao mega clube Berghain enquanto dj residente, Patrick Gräser tem puxado dos galões por detrás da cortina de Answer Code Request. Onde outros gostam de exteriorizar em néon, ele prefere deixar a lume brando a matéria negra até ganhar uma consistência moldável ao ambient enigmático e palpitante em que se move. Vê-se a milhas que cresceu com o catálogo da Warp atrás das costas e que essa relação de amor é transposta para a engenharia robótica do seu meio. Mas este é sobretudo um álbum de atmosferas dispostas em diferentes cores, texturas e camadas. Não esperem portanto daqui a típica rodada de cimento armado com sinal de proibição a devaneios para lá do ritmo. É certo que as batidas quebradas deCode nos chicoteam fisicamente (e nós gostamos), mas depois há uma algo semelhante à comunicação telepática que se desenvolve ao longo de cada tema, apelando aos sentidos e abrindo horizontes definidos por cada um. Aliás, fico a pensar que um tipo inteligentemente discreto como Gräser não escolheu este nome artístico ao acaso. NAJÜPPÄLA KÄÄPIÖOwlora MuskariaLalAdmito que por mais investidas finlandesas que possam existir neste campeonato de neo-folk digital avariada, papo-as a todas. É mais forte que eu e raramente me sinto deceptionado com o que encontro. Se a isto se juntar o formato cassete, a coisa ganha um appeal extra (não sou um gajo fetishista, mas como filho pródigo dos 80's a fita magnética cresceu comigo e eu com ela). Ora, este mais recente lançamento do duo Jüppala Kääpiö representa esse dois em um de perfeição. Na verdade, este cestinho de fruta exótica não traz mais ou menos sabor que outros tantos semelhantes, mas o alto teor vitamínico-surreal pede um consumo até ao caroço. Em apenas dois pares de temas, traçam o imaginário Feiticeiro de Oz aos olhos de um Jodorowki enquanto surgem mantras captados numa galáxia distante ou de um submundo nos confins terrestres. De uma forma bizarra, podemos considerá-la música sagrada (para além do aspecto ritualista), esquecendo todo aquele peso histórico habitual. Em todo o caso, fica o aviso: não experimentem ouvir isto em noites de lua cheia. Só naquela. NAThe Lost Movie, aponta directamente ao que pode ser um disco equilibrado entre uma metade mais fodilhona e uma outra mais sensual. Em sintonia com esse esquema, “Erotica” e “Emmuelle” (era possível ser mais óbvio?) preenchem o lado A com uma house que em si contém um electro capaz de provocar assaduras. O contraponto para isso é um lado B que, sem ser nada inferior, é muito mais aveludado e adequado às horas em que as pessoas ainda se seduzem com alguma discrição (a partir da 1 somos todos animais). SeThe Lost Movieé a banda-sonora para um filme imaginário, da mesma maneira que já eraNight Drive dos Chromatics, esteAlbum Sampler Scene.1 resulta muito bem como o trailer que anuncia a longa-metragem. MADJ SPRINKLESMidtown 120 BluesComantose RecordinsQuem por acaso tentar formar uma ideia do que pode ser um disco-manifesto, em poucos minutos pode dar por si a imaginar Noam Chomsky a falar diante de um microfone sobre os motivos que o levam a reprovar as políticas externas norte-americanas. Essa será porventura a noção mais óbvia e súbita desse objecto estranho que é o “disco-manifesto”, que, por arrasto, deve também ser coisa séria e capaz de mudar as mentalidades.Midtown 120 Blues, álbum originalmente lançado em 2009 e agora recuperado numa edição especial da Comantose, é um manifesto em forma de disco, com a intenção de reflectir sobre a house enquanto situação (com todas as vertentes políticas e sociais que isso implica) e nem tanto enquanto género musical. Mas Terre Thaemlitz (aqui disfarçado de DJ Sprinkles) não é Noam Chomsky, nem tão poucoMidtown 120 Bluespretende assumir a função de panfleto para converter ideias. O que Thaemlitz procura, em vez disso, é mostrar que a house cresceu em atmosferas de profunda tristeza e sobreviveu a várias epidemias (a SIDA varreu o underground nos anos 80), ao mesmo tempo que declara o género como espécie de música de resistência para freaks, transsexuais e marginais em geral. Tudo isto é consideravelmente sério e oBlues do título indicia logo aí um disco de fundamento melancólico, mas Thaemlitz tem anos e anos dehouse music, e melhor que ninguém saberá que o género é também altamente propício à evasão e diversão (quem nunca dançou triste?). Cinco anos depois da sua primeira edição,Midtown 120 Bluescontinua a ser um tratado de house com toda a força dos discos que marcam o seu tempo. MA
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MARK FOSSOMDigging in the Dust: Home Recordings 1976
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MARKO FÜRSTENBERGGhosts from the PastOrnamentsNão acontece só por acaso o triunfo deGhosts From the Past, quando, ao cruzar a metade da sua duração, nos tem perfeitamente rendidos ao valor da sua dub techno. Era de esperar que assim fosse a partir do momento em que o segundo álbum de Marko Fürstenberg traz consigo o selo da Ornaments (e o toque do grande senhor Pole na masterização). No que toca à label alemã, podemos até desconfiar do excessivo requinte gráfico das suas edições, mas ninguém a condenará por ser uma casa que passa o tempo a atirar barro à parede. Nada disso. A Ornaments, tal como várias das suas congéneres, aproveita os 12 polegadas para testar alguns dos seus nomes, antes de lhes oferecer a grande oportunidade do álbum completo. Assim foi comyouAND:THEMACHINES e assim volta a ser com Marko Fürstenberg. As formas assumidas porGhosts From the Pastpodem até ser as mais diversas (“Piano” é tão clássica como o título indica e “Freedom Exists” mistura techno com uma voz de guru espiritual tipo Jim Morrison), mas grande parte das suas garantias residem numa série de faixas dub techno que fazem com que, a partir de agora, o nome de Marko Fürstenberg ombreie com iluminados do género como DeepChord, Ohrwert ouYagya. Está aprovado com distinção. MA
PHILOGRESZThe Lost Movie (Album Sampler Scene.1) PhilNenhum thriller envolve cenas de sexo do início ao fim. Nem mesmo um daqueles que tem a Sharon Stone ou a Demi Moore como actriz principal (sendo que a segunda tem uma dificuldade crónica em manter-se vestida nos filmes). O sexo ininterrupto é uma regalia apenas ao alcance dos robots ou dos alunos da escola tântrica do Sting. Philogresz (produtor civilmente conhecido como Ilker Soylu) entende também que o sexo deve ser intercalado com alguns momentos úteis ao retomar de fôlego. O primeiro sampler em vinil, extraído de um álbum que já saiu completo como
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VÁRIOSTax Haven Vol.4 Iberian RecordsCartada forte na bass music, a quarta da série Tax Haven. Poderia ser muito bem uma jogada britânica, mestres oficiais nestas andanças grime e afins, mas a surpresa vem pelo facto de se tratar de uma label nacional. É sabido que Lisboa tem sustentado uma produção relativamente massiva e certeira no que respeita a novas fusões electrónicas, porém é sempre bom ver mais um farol a erguer-se (e com tamanha imponência). Basicamente a compilação gravita em redor de um quarterto de produtores, a saber: Klipar, Geiom, Noaipre e Pacheko. São estes os homens de confiança da Iberian Records nesta road trip nocturna pela via rápida do que a preguiça poderá, convenientemente, encaixotar no cantinho do dubstep. Sem sinais vermelhos a quebrar o ritmo, não é difícil encontrar uma ou duas malhas de eleição, daquelas que garantem empatia imediata a partir do momento em lhes apertam a mão. Ganha pontos sobretudo pela amplitude de vibes que proporciona: põe-te a meditar sobre as luzes da cidade ao fim do dia com a mesma facilidade com que te põe a subir às paredes lá de casa. Por isso, já sabes; da apróxima vez que te falarem maravilhas do catálogo da Night Slugs, fala-lhes tu desta boa gente e faz um brilharete. NA
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SHABAAM SAHDEEQKeepers of the Lost ArtBelow SystemShabaam Sahdeeq tem em "Keepers of the Lost Art" uma mensagem paradoxal: rotula o seu sexto álbum de "música para adultos" e, ao mesmo tempo, apelida-se de "Indiana Jones" do hip-hop, o verdadeiro salteador que promete resgatar a desaparecida arte doold school hip-hop. O que aqui parece escapar ao rapper de Brooklyn é que o hip-hop (que pretendesalvar) nasceu como um movimento transgeracional de combate social, partindo das mentes criativas dos jovens do desprezado Bronx que deram sentido às dores e reivindicações das comunidades segregadas naquele subúrbio na década de 1970. Ou seja, o hip-hop, seja maisGolden Ageou de influências electro-pop, continua sempre a funcionar como um género para todos os ouvidos e épocas. Até porque não se encerra meramente no que ouvimos nos circuitos comerciais.Mas deixando de lado essa premissa, que delimita à partida a experiência, Sahdeeq tem neste disco um trabalho interessante e consistente. Atrevo-me mesmo a dizer que há umas quantas malhas que facilmente se tornariam referências daold school e dounderground se tivessem sido lançadas há uma década atrás. São os casos da palpitante "Keepers of the Lost Art", da profunda "Walk the Line" e da melancólica "City of Fame" (com Mic Handz). A recuperação dosscratches, o recurso a instrumentos e ossamplesfunk egroovy desaparecidos hip-hop moderno fazem de "Keepers of the Lost Art" uma extraordinária viagem ao passado, relembrando-nos exactamente das virtudes que geraram o parto dum género que não risca gerações. RMV
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THE GARMENT DISTRICTCavendish On Whist Night PeopleNum mundo cada vez mais habitado por aparições indie folk anémicas ateadas por uma geração de Bon Ivers em potência, sobra pouca ou nenhuma paciência para sequelas do género. Jennifer Baron parece uma miúda sensata e que partilha dessa dor. Talvez por isso tenha deixado os Ladybug Transistor a ruminarem em si mesmos e se tenha dedicado então a esta viagem de pop espacial de travo psicadélico a que os olheiros da Night People (gente bem habituada a estas aventuras) não deixaram escapar.Para além de um trabalho gráfico incrível, o disco contém uma série de temas-mosaicos que se encontram tão díspares quanto interligados entre si — funcionando como uma mix sem o querer ser. É engraçado que a tal herança folk não é de todo renegada; ela está lá, mas desta vez à volta da fogueira com algum despojo típico do pós-punk norte-americano e até do retro-futurismo de uns Stereolab ou Broadcast. Da floresta à Via Láctea, é uma escuta completa de “Cavendish On Whist”, sempre com o sol a raiar por perto. Não pensem duas vezes, boleias destas precisam-se. NAKING BRITTBlack UnicornsSvaktKing Britt, muito à custa de um trabalho tão amplo quanto subtil, sempre mereceu mais do que ver o seu nome encaixotado em categorias atrofiantes e coladas a um determinado tempo. De certa maneira, a "maldição" em que King Britt se viu envolvido, ao ser arrastado para todo o tipo de compilações chill-out e semelhantes, resulta do elevado mérito que obteve na composição de música múltipla, sofisticada e geralmente pronta para receber as vozes das principais divas das duas décadas anteriores. Esse mesmo apego à fórmula do produtor eclético, habituadíssimo a estender o tapete sonoro à passagem das vozes femininas, é bem constatável em Intricate Beauty, álbum surgido em 2010, que podia muito bem ter sido lançado em 1996, ao lado de Walking Wounded, ponto alto na carreira dos Everything But the Girl (até porque Ben Watt é uma espécie de King Britt com um amor só).
Mas King Britt prima por ser um gestor inteligente e soube desaparecer de cena quando foi necessário travar a saturação do seu próprio nome. Há alguns anos ouvimo-lo em busca da boa forma num EP da Hyperdub algo frouxo e indistinto. Contudo a mais radical transformação de King Britt sucede-se neste Black Unicorns, disco de uma só faixa de vinte minutos e meio, como manda a regra na muito interessante editora suíça Svakt. Ninguém contaria que o produtor de Filadélfia voltasse a dar sinais de vida com uma longuíssima faixa introspectiva, em que o piano e os sintetizadores soam sempre sujeitos à deterioração de William Basinski e à sensação de futuro perdido de Leyland Kirby (sem esquecer também que todos estes devem de alguma maneira a um senhor chamado Angelo Badalamenti). Na sua própria página, King Britt atribui a composição de “Black Unicorns”, grava em tempo real, à necessidade de expressar as visões que teve ao sentir espiritualmente o seu próprio Unicórnio Negro (talvez seja primo afastado do Thug Unicorn). OK, é uma explicação algo new age, mas acaba por ser adequada a um disco em que King Britt aparece a fugir do seu próprio estigma e a encaminhar-se para um qualquer lugar mágico ainda por definir. MA
VOLKAN AKAALPBaskin OSTGiallo DiscosA princípio julguei que fosse a banda-sonora do filme de culto turco de 1977 de mesmo nome. Afinal (e infelizmente?) é a banda-sonora de uma curta-metragem de 2013 do também turco Can Evrenol, um realizador que pelos vistos é conhecido por filmes chocantes, se é que alguém ainda se choca com rituais satânicos e necrofilia, cujo trailer pouco ou nada me interessou. Cingindo-me à banda-sonora, por um lado, o compositor (?) Volkan Akaalp (???) imita bem o que de melhor se ouviu nos filmes de acção dos anos 80 — Jay Chattaway em “Missing in Action”, por exemplo — ou no terror italiano — Stefano Mainetti em “Zombi 3” — actualizando ligeiramente com uns acrescentos industriais, quase electro, que até ajudam a criar alguma tensão e ambiente. Por outro não tem as linhas melódicas inspiradoras como as que Paul Hertzog escreveu para o “Kickboxer”, nem épicos Hard-FM como os que ouvimos no “Cobra” e muito menos os saxofones que preenchiam as cenas nocturnas desses filmes passados em L.A. ou Detroit e que aqui parece querer-se imitar. Se isso são pontos a favor ou contra é com vocês. Eu senti falta. O mesmo não posso dizer das remisturas dançáveis, que dispenso, mas que certamente irão agradar alguns de vós… ACP