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Apontamentos sobre uma noite com o Abel Ferrara

Chove a potes em Lisboa e estacionei o carro em frente ao Monumental.

O Abel Ferrara e eu. (Fotografia gentilmente cedida pelo Afonso Cortez-Pinto)

Chove a potes em Lisboa e estacionei o carro de maneira algo duvidosa em frente do Monumental (ali no Saldanha). Enquanto se trincam uns hambúrgueres do Mac, lá vai passando um ou outro carrão em direcção ao parking subterrâneo e é inevitável brincarmos com isso: "Olha, lá vai o Ferrara…". O John Malkovich anda por ali a passear umas calças de ir ao mexilhão e a atracção da noite é um biopic focado em Pasolini (multifacetado e inconformado autor italiano assassinado, em Roma, de modo brutal), mas é o nome de Abel Ferrara o mais sonante na noite de segunda-feira do ​Lisbon & Estoril Film Festival. Havia a garantia de que um dos mais duros realizadores nova-iorquinos (nascido no Bronx, agarrado durante muitos anos, profundo conhecedor da street) marcaria presença na sessão do seu próprio filme.

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Quase custava a acreditar que ali estaria o homem que, entre 79 e 92, consegue uma série de filmes que prolongavam a raiva exploitation da década de 70 e traziam uma complexidade patológica e espiritual a alguns dos mais marcantes personagens do cinema de acção dos anos 80 e início dos 90: Driller Killer, Ms. 45, Fear City, King of New York, Bad Lieutenant - todos eles objectos marginais (tal como o seu autor), embora igualmente essenciais para entender que Ferrara não é menor que outros contemporâneos que tiveram muito mais sorte na vida. Pasolini, a novidade que Ferrara vem apresentar ao festival, não será certamente o filme que o alinha com a sorte ou sequer com a boa forma (que se já apregoava por aí).

À partida um homem tão dividido entre a tentação e o compromisso da fé, quanto era Pier Paolo Pasolini, enquadrar-se-ia perfeitamente num retrato concebido por Ferrara (especializado em personagens aprisionados nos seus próprios conflitos), mas Pasolini narra os últimos dias do polémico autor italiano num estilo livre, que depressa nos deixa com a sensação de um filme apressado e incapaz de encontrar uma orientação convincente. Não são raros os momentos em que Pasolini se assemelha a uma colagem de três filmes diferentes (sendo que um deles é tão somente uma projecção algo foleira do que poderia ser o próximo trabalho do autor de Mamma Roma). Willem Dafoe interpreta Pasolini com a contenção e os óculos certos, mas isso não chega para salvar um biopic que não terá uma vida propriamente fácil para encontrar o seu público.

Após terminar Pasolini, acendem-se as luzes da Sala 4 do Monumental e lá surge então Abel Ferrara acompanhado pelo crítico Rui Pedro Tendinha. Os dois parecem ter terminado um jantar de copos há escassos minutos. Não é necessário muito tempo até Ferrara dar conta do seu à vontade de rufia nova-iorquino. Começa por apontar para os cadeirões no palco, enquanto barafusta: "What are these chairs for?! I don't need no fuckin' chairs…". A tradução é dispensável. A partir daí instala-se o Show Ferrara à medida que o homem responde de pé e de microfone em punho às questões que lhe vão sendo lançadas pelo público confortavelmente sentado.

E Nova Iorque assume-se declaradamente naquele senhor de 60 e poucos anos que, tal qual um pugilista, se mantém em constante movimento e que rebate as perguntas com a mesma energia de quem atira as bolas para longe com um taco de basebol. Ferrara nem sempre é inteiramente articulado no discurso, mas, quando tem a palavra, nunca deixa de ser um excepcional animador e contador de histórias. Sobre Pasolini diz que era uma "máquina de soundbytes" (frases acutilantes capazes de resumir uma ideia maior). Ferrara não fica atrás do homenageado da noite e encontra resposta para quase tudo: como foi trabalhar com Tom Berenger em Fear City? "O Tom foi o primeiro alcoólico que tive no meu set e era capaz de dar um enxerto num qualquer membro da equipa de filmagens…". Que motivos levam Pasolini a alternar entre o inglês e o italiano na longa-metragem terminada há pouco? "Olha, vejam o filme totalmente dobrado em italiano e isso fica resolvido". Futuros projectos? "Estou a pensar ir para a Sibéria filmar as diferentes transformações do Willem Dafoe. Vamos precisar de muita neve (snow) e guito (dough)".

Ferrara interage com uma proximidade própria de quem cresceu numa cidade que, com tanta iniciativa artística por quarteirão, ensina as pessoas a não se sentirem assim tão especiais pelo que fazem. Ele é um verdadeiro patrão muito mais do que um cagão. No final ainda houve tempo para, com o empurrão dos amigos, ir tirar uma fotografia com Abel Ferrara, que não parava quieto durante um segundo. A Júlia e o Afonso seguravam nos respectivos aparelhos e tentavam os possíveis para focar o mais inquieto homem do Saldanha, enquanto ele dirigia a cena sem tempo para merdas: "Tira! Tira a foto! Bora lá! Não sejas perfeccionista! Tira!".