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Tecnologia

Fanart, Art Brut e o Sonic Bizarro

Sonic, Wölfli, Nanneti e Dubuffet reunidos unicamente para uma grande seleção de fanarts horríveis.

Em meados da década de 40 do século passado, o pintor e escultor francês Jean Dubuffet cunhou o termo art brut para se referir à arte produzida fora da cultura, no sentido de ser uma arte pura, feita por indivíduos que não são artistas profissionais, que produzem fora das normas estéticas vigentes. Artistas esses que, muitas vezes, eram pessoas com psicopatologias extremas e viviam confinados em sanatórios ou simplesmente isolados da sociedade comum que vai ao banco, troca um cheque e muda uma planta de lugar. Indivíduos como o suíço Adolf Wölfli, o italiano Fernando Nanneti de mundo e o nosso brasileiríssimo Arthur Bispo do Rosário. Pessoas que, através de sua filosofia, projetavam suas visões pela lente do estético, no qual estabeleciam contato com algo que estava além do mundo da cultura e da arte do artista profissional, como descrito por Dubuffet, que, muitas vezes, se assemelha, em suas palavras, ao camaleão e ao macaco.

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Não apenas Dubuffet viu valor nessa arte estranha, fora dos padrões; muitos dos surrealistas, assim como outros movimentos de vanguarda, viam nessas manifestações, assim como na arte das crianças e dos povos não civilizados, uma arte mais pura, mais livre dos grilhões impostos pela sociedade em geral e pela cultura da arte em específico. Os americanos, na década de setenta, inventaram um termo um tanto mais amplo para definir a arte produzida fora dos padrões – não apenas os institucionais e referenciais à história da arte mas fora da cultura normal –, o outsider art. Hoje em dia, obviamente, o termo foi cooptado por gente que não produz necessariamente arte de gente dodói da cuca, com toda a pureza e a potência louvadas por Dubuffet, mas de gente que se acha diferentona e gosta de usar o termo para se diferenciar, nem sei se com tanto sucesso assim.

E qual a relação disso tudo com o fanart bizarro de Sonic? Em grande parte, mesmo seus praticantes não estando nos dois grupos, a produção deles parece em muito cruzar com a arte das crianças e dos loucos, não somente no quesito da proficuidade da técnica, mas também com uma diferença crucial: ela é baseada em um mundo fantasioso institucionalizado nos vários mundos que compõem o cânone oficial do porco-espinho mais famoso dos videogames. A novidade é que, embora o tecido que estrutura o mundo fictício de Sonic esteja posto, essas crianças e loucos passeiam com tranquilidade entre suas ficções doidonas e o cânone oficial.

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Pode parecer apenas uma curiosidade bizarra, um desvio temporário de gente exposta cedo e profundamente demais às más influências da internet, mas o fanfic e a fanart, por mais bobos que possam parecer na maior parte das vezes, são uma porta para a criação das artes visuais e literais para muita gente; o peso avassalador de, ao mesmo tempo, ser cobrada originalidade com a cumulação de milênios de produção da humanidade deixa facilmente qualquer aspirante a artista enrijecido, travadão, especialmente no começo de suas vidas produtivas, e a arte derivativa, a que parte de algo já existente, é um caminho possível para começarmos a engatinhar no mundo da criação sem sentir todo o peso dos séculos. Ainda mais em um mundo onde a própria fruição da alta arte parece uma barreira intransponível para o ser humano comum.

Outro aspecto das fanarts mais bizarras da internet que, geralmente, as pessoas não entendem tão prontamente quando veem pela primeira vez, por exemplo, um Sonic de fraldas ou uma Amy Rose engolindo o Sonic vivo, é que muito do referencial para a criação dessas perturbadas artes são pequenos nichos de fetiches, não necessariamente (embora predominantemente) sexuais, cuja internet é um solo extremamente fértil para seu crescimento. Como a psicanálise clássica de Freud é quase que inteiramente ligada à sexualidade, o trabalho de campo feito por seus seguidores sempre focou nesse aspecto primal da natureza humana e enxerga os desvios dos indivíduos predominantemente através dessa lente. Daí tantos nomes para as práticas fetichistas dos maluquinhos da internet, em que fica difícil identificar se um sujeito fez uma arte bizarra do Sonic por causa de suas preferências fetichistas ou como mera piada com quem tem esses desvios bizarros. Não estou dizendo absolutamente que todos os malucos fanarteiros de Sonic são tarados insanos com fetiches bizarros, mas muito dessa bizarrice pode ser enxergado através desses grupos fetichistas que se excitam com coisas bizarras, termo classificado na psicanálise como parafilia: excitações que não são ligadas diretamente à transa mas a algum outro objeto de desejo, muitas vezes impossível de ser praticado na vida real, como a vorarephilia (não abra esses links no trabalho, pelo amor de Deus), prática na qual o sujeito fantasia em ser devorado vivo. Envolvendo ou não personagens de videogame, a fanfiction, seja ela através da escrita de uma narrativa ou pela ilustração das práticas fantasiosas, é um caminho certo para a realização, ao menos parcial, dessas taras maluquinhas. Claro que esses nichos estranhos existem fora da fanfic, mas a arte derivativa dela ajuda a galera a pelo menos saber sobre os objetos com que fantasiam e dá uma base para a criação literária e visual.

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Nem tudo no mundo da fanart do Sonic (ou qualquer outra fanart) é um mundo horroroso de fetiches específicos e nojentos; felizmente, a maior parte dela sequer é sexual. Tem muito pré-adolescente apenas fazendo personagens novos baseados neles mesmos, o que é uma continuação pós-moderna de se brincar de cavaleiros da távola redonda, de polícia e bandido, de forte apache, em que as referências primeiras da molecada não são um policial fortão ou um caçador de índios, mas um personagem de videogame no qual ele projeta sua própria identidade e até sua nacionalidade, como no exemplo do Knucles chileno acima. E isso é comum: embora os heróis sejam mais estranhos, seu papel normal na criação de identidade da molecada não me parece tão diferente. Vale ressaltar que é consideravelmente mais fácil desenhar um Sonic com seus traços cartunescos à la Disney do que, por exemplo, fazer um retrato de lápis de cor de um Rambo, que necessita de toda a técnica da arte capaz de representar o objeto (John Rambo) fisionomicamente apropriado para ser reconhecível.

Estou dizendo que a fanart bizarra do Sonic é coisa de doentes e pervertidos? Absolutamente, não; os exemplos mais puros de art brut de Dubuffet são de indivíduos isolados da cultura artística, de uma sociedade que partilhe os valores e técnicas que eles, sozinhos, desenvolveram e, em vários casos, foram criadores únicos dos mundos fantasiosos enriquecidos através da arte que produziam. A fanart, ao contrário, nasce dentro de uma cultura, mesmo que ela seja pop e fantasiosa, e ela se adequa aos cânones visuais e narrativos dessa cultura, embora muitas vezes com uma técnica humoristicamente amadora. Salvo exemplos extremos, a prática do fanfiction não é tão bizarra nem sinal claro de desvios psíquicos horrorosos, como pode parecer a princípio, mas, como tudo mais no mundo, o estranho, o que destoa, nos salta mais facilmente aos olhos. É o papel de pessoas como a galera que cuida do Bad Sonic Fanart no Twitter faz, mostrando o que há de mais bizarro nessa fandom, que, por vários motivos talvez incompreensíveis para nós de fora do nicho, se tornou uma das bases para as artes de fãs mais bizarras da internet. Especialmente quando misturam o Sonic com o Shrek, aí ficou osso mesmo.

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