O antigo neo-nazi que se converteu em defensor da paz

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crónica

O antigo neo-nazi que se converteu em defensor da paz

Tudo começou em 1987, quando tinha apenas 14 anos. Christian, diz, procurava um sentido mais profundo para a vida. Acabou envolvido num mundo de violência, a que só conseguiu escapar muitos anos depois.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA e é uma adaptação de "Romantic Violence: Memoirs of an American Skinhead", de Christian Picciolini. Picciolini é um ex-skinhead neo-nazi convertido em defensor da paz. Em 2010, fundou a organização sem fins lucrativos, Life After Hate, que tem o objectivo de sensibilizar pessoas e organizações para os problemas do racismo, do extremismo e da radicalização. Podes segui-lo no Twitter.

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Tinha 18 anos quando, pela primeira vez, subi ao palco de uma catedral musical na Alemanha, por entre o rugido de centenas de skinheads neo-nazis que gritavam "Heil Hitler!" e o nome do meu grupo. Naquela nebulosa noite de Março de 1992, um sentimento de absoluta devoção pelo white power dominava a multidão. Eu era o vocalista da primeira banda skinhead norte-americana a viajar além-fronteiras para actuar Na Pátria. Fazíamos história. Naquele momento imaginei que Hitler devia sentir o mesmo quando se dirigia ao exército, com a sua missão de dominar o Mundo.

As minhas músicas falavam sobre como a legislação favorecia os negros que, por sua vez, roubavam os trabalhos aos brancos. Sobretudo nos impostos, que nós os brancos devíamos pagar para suportar os programas de ajudas sociais. Eu achava que os bairros de famílias brancas, honradas e trabalhadoras, estavam a ser invadidos pelas minorias e pelas suas drogas. Os gays - uma ameaça para a perpetuação da nossa espécie - estavam a reclamar direitos especiais. As nossas mulheres estavam a ser enganadas para manterem relações com membros das minorias. Os judeus estavam a planear a nossa eliminação. Não havia dúvida de que a raça branca estava em perigo.

Foi nisto que me fizeram acreditar.


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Tudo começou em 1987, quando tinha apenas 14 anos. O meu único desejo era dedicar-me a um propósito mais nobre. Procurava um sentido mais profundo para a minha vida, para lá da existência mundana em que estavam mergulhados tantos adultos da classe operária à minha volta. Negava-me a abandonar as minhas comodidades, queria aproveitar os benefícios. O destino ofereceu-me de mão beijada uma forma de cumprir os meus anseios.

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A minha inocência juvenil terminou de forma abrupta no dia em que conheci Clark Martell. Estava na rua, no lugar do costume, super pedrado, quando o ruído do motor de um carro me chamou a atenção. Um Pontiac Firebirds negro de 1969 chegou a derrapar pela estrada e parou mesmo à minha frente. Por trás da luz amarela dos faróis, a porta do passageiro abriu-se. De dentro do carro saiu um tipo mais velho, com a cabeça rapada e botas militares pretas, que se dirigiu a mim. Não era especialmente alto, nem fisicamente imponente, mas a sua cabeça lisa e aquelas botas brilhantes davam-lhe um ar autoritário. Vestia uma t-shirt de um branco imaculado e uns suspensórios em tom de vermelho que sustinham as calças de ganga.

Inclinou-se para a frente, olhando-me fixamente, com os seus olhos redondos acinzentados. O branco que emanava das suas pupilas era intenso e reflectia anos e anos de experiência e desgaste. Falou num tom suave, quase sem abrir a boca: "Não sabes que isso é exactamente o que os judeus e os capitalistas querem que faças para te manterem dócil?". Não tinha bem a certeza do que era um capitalista e nem sequer sabia o significado de "dócil", mas o meu instinto disse-me para apagar de imediato o charro. Sem querer, tossi uma pequena baforada de fumo que lhe foi directa à cara.

Com uma rapidez surpreendente, aquele gajo de olhos acinzentados penetrantes, deu-me um soco com uma mão, arrancou-me o charro com a outra e pisou-me com as suas lustrosas Doc Martens. Estava atónito. Só tinha apanhado assim do meu pai. O gajo, com um maxilar bastante saliente e barba ainda por crescer, agarrou-me firmemente. "Sou Clark Martell, puto, e vou salvar-te a vida".

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Estava paralisado pelo terror e admiração: este homem com a cabeça lisa e botas altas e imaculadas ia salvar-me a vida. O tipo acabou por tornar-se no primeiro líder de um grupo de skinheads neonazis nos EUA. Nesse dia, naquele beco em Chicago, por onde tantas vezes passei com a minha bicicleta, tinha nascido o movimento skinhead da supremacia branca, o white power. Com a mesma rapidez com que chegou, Martell voltou a desaparecer no interior do ruidoso carro, rua abaixo, a toda a velocidade, como uma fénix em chamas, deixando-me numa nuvem de dióxido de carbono e fascínio.

Não demorei muito até decidir abandonar a minha quase inexistente auto-estima de adolescente e insegurança para abraçar o poder. Um mês depois, quando voltei a casa de bicicleta depois de um jogo de basebol, três rapazes negros, do outro extremo da cidade, deram-me uma sova. Roubaram-me a Schwinn Predator preta e vermelha, que tinha comprado há umas semanas com o dinheiro que poupei do meu aniversário. Recordo vagamente o que aconteceu naquele dia, excepto um intenso sentimento de raiva e decepção por não ter conseguido evitar que me roubassem a bicicleta. Era intolerável que alguém de fora do meu bairro viesse até ali para roubar o que era meu.

E, uma vez mais, como se fosse um leão, ali estava Martell para me estender a mão. Para me salvar. Pouco tempo depois convidou-me para uma "festa". Não hesitei nem um segundo, mesmo com o olho negro. Quando cheguei ao apartamento, estavam já umas 30 pessoas, a maioria malta na casa dos 20: skinheads de Michigan, Wisconsin, Texas e Illinois. Também vi várias caras conhecidas do meu bairro, mas com 14 anos, eu era, de longe, o mais novo.

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Alguém ofereceu-me uma lata de cerveja. Eu já estava eufórico só por ali estar e, apesar de não ter idade suficiente, aceitei. Do meu lugar só via cabeças rapadas, tatuagens, botas e suspensórios. Em vez de cortinas, havia bandeiras nazis e abundavam braçadeiras com a suástica. Os tipos mais corpulentos abraçavam umas miúdas com um aspecto pesado, deixando claro quem eram os cabecilhas do movimento. Antes de acabar a primeira cerveja, um gajo musculoso e com uma grotesca suástica tatuada no pescoço chamou a atenção dos assistentes. Desde uma esquina da sala, pronunciou as palavras que marcariam os sete anos seguintes da minha vida.

"Catorze palavras!", disse com voz trovejante. Toda a gente se virou na sua direcção, imediatamente: "Devemos garantir a existência da nossa gente e um futuro para as crianças brancas!". A sala encheu-se de braços ao alto, com a saudação nazi. Num ímpeto, também levantei o braço.


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Durante mais de uma hora, o meu coração palpitava com força e determinação. Fui cativado por aquelas palavras ardentes que algum tempo depois já proferia durante o sono. Na parede havia uma bandeira norte-americana meio queimada. O tipo pegou numa lata de cerveja e disse num tom de voz potente: "O nosso governo traidor quer-nos fazer acreditar que a igualdade racial é uma forma de pensamento avançado, irmãos e irmãs, que todas as raças deveriam viver em paz e harmonia. Tangas! Olhem à vossa volta. Abram os olhos e não se deixem enganar. O que vêem quando os negros se mudam para os nossos bairros? Vêem droga e delinquência nas ruas. As ruas enchem-se de lixo. Começam a cheirar ma,l porque esses macacos não fazem outra coisa senão passear, fumar erva e engravidar as suas putas drogadas. Nem sequer se dão ao trabalho de limpar".

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"A única coisa com que se importam é com o dinheiro que vocês e eu ganhamos, com muito trabalho. Vivem das ajudas. Dos subsídios de desemprego. São sempre os primeiros na fila a pedir todas as ajudas que o governo dá. As casas sociais. As cantinas públicas. A única razão pela qual as crianças negras vão à escola é porque querem comida grátis e ajudas sociais. E tudo isso somos nós que pagamos, os norte-americanos brancos que trabalhamos de sol-a-sol e que jamais esperamos que nos ofereçam comida gratuita, porque sabemos cuidar de nós próprios. E enquanto nos esfolamos a trabalhar, esta asquerosa raça inferior dedica-se a vender droga aos vossos irmãos mais novos. Vendem-lhes essa merda para que envelheçam rapidamente e aparentem ter 60 anos quando, na verdade, têm 16. Matam-se uns aos outros em grupos de delinquentes", continuou.

E ainda mais: "Transformam-nos em toxicodependentes para conseguirem que as nossas mulheres de raça ariana tenham relações sexuais com eles, a troco de matar o vício. E pensam que vendem essa porcaria para enriquecer e comprar Cadillacs e fios de ouro? Acordem de uma vez por todas, irmãos e irmãs. Vendem veneno para conseguir que os nossos jovens sejam tão imbecis como as suas crianças. Querem que a nossa gente esteja tão morta por dentro, que fumem e snifem a primeira coisa que encontrarem. Querem ver como os nossos se destroem e acabam na prisão, onde um grupo de violadores assassinos abusarão deles. E quem é que os manda destruírem a nossa raça? Os judeus e o seu governo de ocupação sionista. Eles!".

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Em seguida, assistimos a uma diarreia de insultos contra os judeus, pronunciada com bastante fervor. As veias do seu pescoço estavam a ponto de rebentar e a saliva acumulava-se nos cantos da boca. A raiva inundava os seus olhos. Indignação. Verdade. Concluiu o seu discurso tal como começou. "Catorze palavras, família! Catorze sagradas palavras". Pronunciámos aquelas catorze palavras uma e outra vez num só grito, de pé, à sua frente.

A adrenalina queimava-me como fogo, e apenas um suor miudinho e nervoso emanava do meu corpo, enquanto o fumo cáustico da retórica fascista invadia a sala. Sentia-me preparado para salvar o meu irmão, os meus pais, avós, amigos e qualquer pessoa branca decente à face da Terra. Como poderiam estar tão cegos os brancos para não ver a desgraça absoluta que enfrentavam?

Tudo dependia de mim e dos que eram como eu. Era uma obrigação colossal, mas eu não tinha bem a certeza de que lado estava a minha lealdade.

O autor, em adulto. Fotografia por Mark Seliger

Naquela noite vivi a experiência mais surreal e intensa da minha vida e fui, total e imediatamente, seduzido. Sentia-me muito atraído pela cultura skinhead de supremacia branca, apesar de ser consciente que não era como o resto das pessoas que estavam naquele apartamento. Não provinha de uma família abastada, nem me tinham educado para odiar a quem quer que fosse diferente de mim. Mas percebia que o meu coração estava prestes a sair do peito. Queria fazer parte daquilo, com todas as minhas forças. Era aterrador.

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Ao longo dos sete anos que seguiram transformei-me num miúdo prodígio, a cargo do recrutamento de grupos de jovens extremistas brancos. Formei dois grupos de white power - American Youth e Final Solution - e a música converteu-se na minha principal ferramenta propagandística para captar mais soldados. Não era preciso ser muito inteligente para detectar adolescentes com famílias destruturadas, com pouco amigos, marginalizados e que se sentiam sós, indignados, desamparados, ou que sofriam uma crise de identidade. Só precisava de começar uma conversa e perceber quais eram os problemas.

"Entendo perfeitamente, amigo. Se o teu pai não tivesse perdido o emprego tudo tinha sido diferente. Mas sabes, as minorias levam todos os nossos trabalhos. Ficam sempre com os melhores, mudam-se para os nossos bairros e monopolizam todas as ajudas. Os nossos pais trabalham todos os dias para poder ter um prato de comida quente, enquanto esses negros e mexicanos recebem o dinheiro todo das ajudas, sem mexer uma palha".

Estava cego, tinha o pensamento manchado pelo meu próprio ego e não conseguia prestar atenção às minhas necessidades emocionais básicas. Acabava por culpar os outros - negros, gays, judeus e qualquer outro que não fosse como eu - pelos problemas da minha vida. O meu pânico sem fundamento foi-se manifestando em forma de ódio violento. Acabei por tornar-me num jovem radicalizado por aqueles que viram em mim um miúdo vulnerável.

E, na minha busca desesperada por um significado para a vida, na minha tentativa de me afastar do banal, devorei as migalhas com as quais me alimentaram e que se tornaram num delicioso jantar. Moldaram a minha identidade até ao ponto de anularem a minha verdadeira personalidade, essa da qual queria fugir quando era mais jovem. Fechado nessa minha versão, transformei-me num valentão gordo e racista, obeso mórbido pelas incontáveis mentiras com as quais me tinham alimentado, aproveitando-se da minha juventude, ingenuidade e solidão.

Passei um terço da minha vida, quase toda uma etapa escolar de adolescente, a alimentar-me daquelas crenças retorcidas e malvadas. E quando, finalmente, tive tomates para abrir os olhos e aperceber-me que todas essas "verdades" que me tinham incutido, e que eu já tinha proferido a outros, eram uma grande mentira, a única coisa que tive vontade de fazer foi meter os dedos na garganta e vomitar todas aquelas palavras.

Ainda hoje, 20 anos depois de me ter afastado daquele movimento de incitação ao ódio, que eu próprio tinha ajudado a criar, sou assaltado por lembranças daqueles obscuros sete anos e sinto a raiva a invadir o meu corpo. Quando vejo fotografias do meu eu antigo, vejo um desconhecido, um recipiente oco, repleto de elementos nocivos. Mas ainda hoje brotam sementes tóxicas que eu mesmo ajudei a infectar e plantar há uns anos. Por isso, o meu propósito agora é arrancar essas sementes, assim que as vejo germinar.

Tal como a maioria das pessoas que foram enfeitiçadas pelo carisma de alguém, enquanto me contavam todas aquelas "mentiras brancas", a primeira coisa que fiz foi procurar provas de que o que estavam a dizer-me era correcto. Quando olho para trás, fico sem reacção. Como pude ser tão idiota, tão crente? Como pude negar a dor que incuti a tanta gente inocente de forma tão determinada? Vendi a minha empatia natural a troco de um pouco de aceitação. Confundi o ódio e a intimidação com a paixão, e o medo com o respeito.

Apenas quando assumi a verdade de tudo aquilo, uma nova vida começou para mim. As mudanças começaram a aparecer desde o momento em que me desprendi das mentiras que tinha interiorizado, quando voltei a recuperar a empatia da minha adolescência e aceitei a compaixão dos outros, quando menos a merecia. Foi então que o ódio se desintegrou e a minha ideologia retorcida se desmoronou. Cansei-me de fazer malabarismo com as mentiras e de esconder medos depois de sete anos sem ser honesto comigo mesmo. Tinha chegado o momento de enfrentar a verdade, por isso pus o pé no acelerador e lancei-me contra uma parede, metaforicamente falando, contente por destruir os meus demónios interiores. Só depois daquela dolorosa morte simbólica fui capaz de renascer como uma fénix que levanta voo por entre as cinzas.