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As Mulheres Usavam Biquínis, e não Burcas, em La Goulette

Antes de ser dominada pelo ultraconservadorismo religioso, La Goulette foi outrora um subúrbio tunisiano onde mulheres podiam usar biquínis e imigrantes de qualquer nacionalidade viviam em harmonia.

Todas as fotos de arquivo fornecidas por Hadia Djeziri. 

Conheci Jacob Lellouche no fundo do Mami Lily, seu restaurante em La Goulette, um bairro suburbano de Túnis, a capital da Tunísia. Seu rosto bronzeado contrastava com os cabelos brancos enquanto ele pegava um cigarro e o equilibrava entre os dedos. Quando conversei com Lellouche, ele pintou um retrato dos dias de glória de La Goulette.

“No Purim, no Natal e no Eid Al-Saghir”, os maiores feriados do judaísmo, cristianismo e islamismo, respectivamente, Lellouche disse que “costumavam dar ingressos grátis para o Cinéma Rex para as crianças da vizinhança”, referindo-se ao antigo cinema que existia no trecho norte da velha comunidade de praia.

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“No final do Sabá, as famílias judias [de La Goulette] faziam cuscuz de frango e mandavam para seus vizinhos muçulmanos e cristãos. Os feriados tinham menos a ver com religião e mais com a partilha”, acrescentou ele, entre frases curtas em francês para sua mãe, que misturava culinária judia e tunisiana na cozinha do restaurante.

La Goulette, ou Halq El Wadi em Árabe, aninhada numa península ao norte do centro de Túnis entre um lago e o Mediterrâneo, perdeu o brilho de seus anos dourados. Naquela época, imigrantes sicilianos, franceses, malteses e gregos misturavam-se aos tunisianos muçulmanos e judeus nos infinitos restaurantes e mercados de peixe do bairro.

Hoje, muitas das casas dos antigos moradores estão vazias, e os bares à beira mar se transformaram em cafés de plástico e vidro que tocam música tecno. Cinquenta anos atrás, essa mistura cosmopolita de três religiões e cinco línguas não era incomum no mundo árabe. As histórias sobre La Goulette contadas por pessoas como Lellouche contrariam o que a mídia costuma mostrar quando o assunto é o mundo árabe, um lugar onde todos falam árabe, são muçulmanos e o conservadorismo intenso é onipresente.

A Tunísia vem lutando para encontrar seu caminho desde a revolta que derrubou o ex-presidente Zine El Abidine Ben Ali com a ascensão dos salafistas ultraconservadores, o assassinato dos líderes da oposição por militantes islâmicos no ano passado e uma economia em depressão. O Ennahda, o antigo partido islâmico moderado no poder, acusado por muitos de pegar leve com os islâmicos fanáticos e encorajar o conservadorismo, cedeu o poder em janeiro a um governo interino.

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Hadia Djeziri, uma orgulhosa secular de 66 anos, me levou por uma escadaria estreita até seu estúdio, num flat em cima do Café Miled, à beira-mar, em La Goulette. O flat tem vista para um porto aonde gigantescos ferryboats vermelhos vão e vêm de Palermo e Marselha. Djeziri se mudou para La Goulette do centro de Túnis nos anos 1950, quando ainda era criança. Descendente de turcos-otomanos que vieram da Argélia no século 19, seu cabelo pintado de ruivo e a pele pálida e sardenta a fazem parecer mais irlandesa do que qualquer coisa.

Djeziri descreve a La Goulette de sua juventude como um lugar para se escapar do conservadorismo de outras áreas para um estilo de vida mais liberal, ainda mais no verão, quando a população do bairro dobrava. Quando menina, ela fugiu de sua família árabe tradicional pela liberdade que a mescla cultural heterogênea do bairro proporcionava. “Saí da cultura conservadora e comecei a sair com italianos e judeus”, disse Djeziri, com um sorriso.

Quando jovem, Djeziri muitas vezes escapava da casa de sua família usando um safsari, uma vestimenta branca comprida que algumas idosas ainda usam, fugindo discretamente de seu pai e das quatro esposas dele. Andando pelas ruas de biquíni, Djeziri atraía os olhares dos homens locais, que achavam que ela era sueca por causa de seu cabelo ruivo. “Eu fazia o que queria. Eu ia a discotecas. Eu dançava”, ela acrescentou. “Mas fazia tudo em segredo.”

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Voltando ao presente, Djeziri expressou seu desprezo pelo estado atual das coisas na Tunísia, amaldiçoando os islâmicos que recentemente chegaram ao poder. “O Profeta, que a paz esteja com ele, disse: 'Tenho minha religião, e você tem a sua'. Você é livre e eu sou livre. Mas o Ennahda não. Eles querem impor um controle e uma lei. Eles querem forçar suas ideias sobre nós e nos fazer obedecer”.

Mexendo em sacolas plásticas cheias de imagens granuladas do passado, ela pesca uma foto em preto e branco de 1975. Nela estão os três irmãos de Djeziri, que, em busca de trabalho e, talvez, uma ligação com suas raízes turcas, se mudaram para a Turquia e se casaram com mulheres de lá. Na foto, seus irmãos, atrás de suas noivas turcas, têm costeletas grossas e bigodes pesados, entregando a moda da época.

Do lado de fora do estúdio de Djeziri, alguns jovens andam pela praia embaixo do sol. Biquínis são difíceis de imaginar quando observo as mulheres de hijabs escuros andarem até a água fresca do Mediterrâneo.

Como Djeziri, Abdctar Bihaji fala com nostalgia sobre a La Goulette dos tempos seculares do ex-presidente Habib Bourguiba. Bihaji é muçulmano, filho de pai tunisiano e mãe siciliana. Ele trabalha entre pescadores de pele grossa num mercado de frutos do mar a céu aberto no centro do bairro.

Falando da La Goulette de sua infância, Bihaji disse: “As pessoas andavam por aqui em roupas de banho, rindo; mas agora, todos estão no limite… Se pudesse voltar, eu voltaria. Eu trabalharia para deixar La Goulette de novo do jeito que era”.

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Dois senhores judeus chamados Simon Haouzi e Alain Bocobza compartilham os sentimentos de Bihaji. Haouzi, 68 anos, e Bocobza, 69, são amigos desde a infância. Os dois trocaram La Goulette pela França depois que o ex-presidente Habib Bourguiba começou a reprimir as minorias após a independência. Mas Haouzi e Bocobza não conseguiram ficar longe para sempre.

“Aqui [em La Goulette] as pessoas me cumprimentam nas ruas, perguntam como estou quando passo pelos cafés. Todo mundo me conhece aqui. Na França, eles não dizem nada”, diz Haouzi, que, depois de sofrer um derrame, caminha com a ajuda de uma bengala e fala com um pouco de dificuldade.

Bocobza descreve o bairro em seu antigo clima festivo. “Todo dia 15 de agosto, no festival [católico] da Virgem Maria, todo o bairro saía e celebrava junto.”

Mas isso começou a mudar nos anos 1970, de acordo com Bocobza. O conservadorismo social “pegou nos anos 1980. A economia desde a época de Bourguiba andava mal”. Com o tempo, ele disse, “mesmo as pessoas com diploma não conseguiam arrumar emprego”.

O resultado, segundo ele, foi se voltar para si mesmo. “Para tentar escapar da pobreza e da miséria [da vida cotidiana], as pessoas começaram a se refugiar em ideias religiosas conservadoras de fora da Tunísia.”

Estrangeiros e não muçulmanos, que já tinham começado a sair de La Goulette nos anos 1960, tornaram-se somente um punhado de pessoas. Muitas sinagogas no bairro fecharam as portas, deixando apenas uma em funcionamento, bem ao lado do prédio de Haouzi.

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Apesar de o passado ser uma fonte de memórias coloridas para os veteranos do bairro, o futuro parece sombrio. Se o Ennahda retornar ao poder na Tunísia nas eleições deste ano, Haouzi acha que o destino do que sobrou das minorias no bairro estará selado.

“Vou morrer na Tunísia”, disse Haouzi. “Mas os outros judeus que puderem ir embora certamente irão se o Ennahda voltar.”

Hadia Djeziri disse com raiva: “La Goulette está pourri, podre. Não é mais o bairro que foi um dia… Se os italianos, judeus e malteses pudessem retornar, La Goulette voltaria à vida”.

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Tradução: Marina Schnoor