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Com mais grana, próximas Copas tendem a ter futebol ainda mais burocrático

Interesses bilionários devem aumentar o número de jogos competitivos e reduzir ou quase acabar com os amistosos, o que dará menos tempo e espaço para experimentos dos técnicos das seleções que já pouco arriscam.
Ilustração: Cassio Tisseo

A Copa do Mundo da Rússia acabou com a final mais agitada e cheia de gols dos últimos 50 anos, deixando lembranças daquelas que vamos guardar para sempre, da campeã França e seus Negros Maravilhosos™ à frustração causada por alemães, espanhóis e, vá lá, argentinos, dos memes do Neymar ao surpreendente desempenho da seleção da casa. Carisma, a Copa continua tendo de sobra. O espaço no coração dos torcedores está garantido, é claro.

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Mas e a bola? E o sonho de ver os craques no auge, os melhores do mundo fazendo os melhores jogos? A verdade é que, a despeito dos números e das emoções, tecnicamente não foi uma Copa das mais brilhantes. Muitos jogos truncados, times supostamente sofrendo com retrancas, muitos jogos decididos por gols de cabeça após chuveirinho na área, alguns gols contra, muitos gols de pênalti. Não sou eu quem digo: podem procurar analistas dos mais diversos por aí, brasileiros e estrangeiros, bem ou mal humorados, admitem que não foi um Mundial que apresentou grandes novidades táticas e um brilho técnico de encher os olhos, salvo meia dúzia de exceções.

Quer um spoiler? Vai piorar.

E não é por pessimismo puro e simples, mas por uma questão de calendário. Por um lado, é verdade que as seleções hoje em dia jogam com muito mais regularidade, nas chamadas “datas Fifa”. Só para uma comparação estatística, Neymar defende a seleção brasileira desde 2010, e já computa 90 jogos, com 57 gols marcados – e essa lista não inclui os jogos pelo time sub-23 nas Olimpíadas de Londres-2012 e Rio-2016; o Rei Pelé levou 14 anos, de 1957 a 1971, para disputar 92 partidas consideradas “oficiais”, entre amistosos e jogos de competição, e marcar 77 gols. (E olha que a CBF considera 114 jogos e 95 gols, mas essa lista inclui jogos contra clubes e combinados, que não são considerados pela Fifa.) Ou seja, Ney precisou de pouco mais de metade do tempo para se igualar ao Rei – em número de jogos, que fique claro.

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Por outro lado, porém, os períodos de treinos das seleções são cada vez mais curtos. Podemos lembrar que, até 1986, as preparações da seleção brasileira duravam pelo menos três meses, com os jogadores totalmente a serviço do time nacional (neste texto sobre o Josimar, tem alguns detalhes de como foi a preparação para a Copa do México.)). Neste ano, Tite teve exatos 28 dias entre a apresentação de parte da equipe, em Teresópolis, e a estreia contra a Suíça.

E isso que estamos falando de Copa. Para os jogos de Eliminatórias, geralmente não há mais de dois ou três dias de treinos. A rotina da seleção no ciclo 2015-2017 foi basicamente esta: apresentação na segunda, jogo na quinta, outro jogo na terça, dispensa, até o mês que vem. Considerando que cerca de 90% da seleção atua na Europa, eram maratonas de dar inveja a qualquer Vanderlei Cordeiro de Lima.

E, mesmo assim, os clubes reclamam. Em março deste ano, a Associação dos Clubes Europeus fez uma reunião em que protestou abertamente contra o excesso de jogos. Luka Modric, eleito o melhor jogador da Copa da Rússia, disputou 71 jogos na temporada 2017/2018, contando o Real Madrid e a seleção da Croácia. Como é óbvio que os clubes não vão querer reduzir o próprio calendário, o que significaria perder dinheiro, quem vai acabar pagando são as seleções.

O que é seleção, afinal?

O próprio conceito de seleção está em xeque e não é de hoje, assim como a discussão sobre o nível técnico da Copa. Em 2010, a Espanha levou seu único título com um futebol claramente inspirado no tiki taka que consagrou Pep Guardiola no Barcelona – mas com um nível inferior ao do próprio clube, já que, em vez de Messi, tinha o bonde Fernando Torres no ataque. No mata-mata, a Fúria venceu os quatro jogos por 1 a 0, contra Portugal, Paraguai, Alemanha e Holanda, e o próprio Torres foi para o banco nos últimos jogos.

Hoje, num hipotético duelo que só pode ser disputado no videogame, quem levaria a melhor: a França de Mbappe, Griezmann e Giroud ou o Paris Saint-Germain de Mbappe, Neymar e Cavani? A que posição um clube estrelado como o Real Madrid conseguiria chegar numa Copa do Mundo? O Barcelona de Messi não massacraria a tosca Argentina de Messi?

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E não é só sobre riqueza, claro. É sobre entrosamento e trabalho. O futebol não tem segredo: quanto mais um time treina, mais o técnico consegue trabalhar com o grupo, definindo esquemas, posicionamento, jogadas ensaiadas e alternativas táticas. Já na seleção, o que o treinador consegue fazer é juntar os caras seis vezes por ano, durante no máximo 10 dias, incluindo jogos, treinos e viagens. É por isso que trabalhos de longo prazo costumam dar certo, que o diga Didier Deschamps com seus seis anos à frente da seleção francesa. (Mas também foi por isso, pelo menos em parte, que Tite se aferrou a suas certezas e seus parças, e acabou morrendo junto com eles nas quartas de final.)

O próprio mercado de técnicos na Europa é uma prova de como as seleções são menos prestigiadas que os clubes. Vários dos profissionais mais renomados, como Pep Guardiola, Carlo Ancelotti, Jurgen Klopp e José Mourinho, nunca treinaram uma seleção. Enquanto isso, dos quatro técnicos finalistas desta Copa, o único com relativo brilho em clubes foi Deschamps, que levou um surpreendente Monaco à final da Liga dos Campeões em 2004 (perdeu para o Porto) e ganhou o Francesão de 2010 com o Olympique de Marselha – nada de encher os olhos, convenhamos. Isso, claro, se reflete nos salários. Enquanto Joachim Löw, técnico mais bem pago da Copa, recebe em torno de R$ 16 milhões por ano para comandar a Alemanha desde 2006, o Manchester City paga em torno de R$ 75 milhões por ano a Guardiola.

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O Brasil ainda consegue manter a ideia de que a seleção é o topo da carreira de um treinador, tanto que Tite é de longe o dono do maior salário do país na profissão, com renda estimada de R$ 14,5 milhões por ano (aliás, o mesmo salário de Deschamps na França). Na mesma situação estava a Argentina, que pagava R$ 7,5 milhões por ano a Jorge Sampaoli e ainda precisou pechinchar uma multa rescisória que beirava os R$ 30 milhões para se livrar dele.

Um caso bem ilustrativo aconteceu com a Espanha. O técnico Julen Lopetegui, que tinha acabado de renovar contrato com a seleção até 2020, aceitou a proposta do Real Madrid para suceder Zidane; o clube anunciou a contratação; e o presidente da Federação Espanhola ficou tão irritado com o acordo feito nas suas costas que mandou o treinador embora a dois dias do início da Copa. Com o improvisado Fernando Hierro, a Fúria passou vergonha e caiu nas oitavas de final. Houve quem visse na postura do Real algo entre a arrogância e a necessidade de se impor e se mostrar maior e mais importante do que a seleção.

De olho na grana

O calendário mundial de seleções hoje funciona assim: Copa a cada quatro anos, com 32 seleções; Copa da Confederações, que desde 2005 acontece sempre um ano antes do Mundial como evento-teste, com oito seleções (a disputa no Catar, porém, ainda é incerta); Eliminatórias da Copa, em geral iniciadas com três anos de antecedência; e as competições continentais, a cada quatro anos, no caso de Europa, América do Sul, Ásia e Oceania, ou a cada dois anos, na África e na região da Concacaf. Todas essas partidas se realizam em “datas Fifa”, o que significa que os clubes são obrigados a ceder os jogadores convocados pelas seleções para esses jogos. Em tese, os campeonatos de clubes deveriam parar – mas não é o que acontece, por exemplo, aqui no Brasil.

Também há o torneio olímpico de futebol e os Mundiais de base, que, por terem limitação de idade, não fazem parte do calendário oficial da Fifa para competições adultas, não exigem a liberação dos atletas – então cada negociação entre clubes e federações é um campeonato de queda de braço. Para contar com Neymar na campanha do inédito ouro olímpico no Rio-2016, a CBF combinou com o Barcelona que ele não jogaria a Copa América Centenário, disputada um mês antes nos Estados Unidos.

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Os amistosos também acontecem nas datas Fifa, aquelas em que não há torneios de seleções. Só que isso tende a ficar cada vez mais raro. Na Europa, por exemplo, as seleções disputarão a partir de setembro a Liga das Nações, um torneio em que se enfrentarão quando não estiverem disputando as eliminatórias da Eurocopa de 2020. A França estreia no dia 6 de setembro, contra a Alemanha, em Munique; a Croácia joga cinco dias depois diante da Espanha, em Barcelona. A Liga foi dividida em várias divisões, com acesso e descenso, o que é promessa de jogos emocionantes entre equipes de níveis parecidos. A divisão principal, inclusive, terá semifinais e final, em junho do ano que vem.

A própria Fifa pensa em criar a sua Liga das Nações. O presidente Gianni Infantino relatou em abril deste ano que há uma proposta bilionária de um grupo de investidores para realizar um grande torneio mundial de seleções além da Copa, além de um Mundial de Clubes renovado, a cada quatro anos, no lugar do que acontece anualmente em dezembro e provavelmente substituindo a Copa das Confederações. A entidade já criou um grupo de estudos, mas não há prazo para apresentar a proposta oficial. É muita grana, coisa de US$ 25 bilhões (quase R$ 100 bilhões), segundo as agências de notícias.

O excesso de jogos competitivos entre seleções pode até aumentar o interesse do torcedor, mas, na questão do nível técnico, vai ampliar o cenário visto na Rússia: se o jogo vale taça, e grana, os técnicos provavelmente vão ousar pouco, dar menos espaço a novatos e pensar mais no resultado do que em como melhorar o desempenho. Os jogos serão mais truncados do que os amistosos. Haverá poucas novidades táticas e técnicas.

Fora que uma Liga em que só se enfrentam seleções de nível parecido vai reduzir ainda mais a pouca democracia que existe no mundo da bola. Sem intercâmbio, sem enfrentar os fortes, os pequenos tendem a continuar pequenos, a possibilidade de zebras vai cair, o futebol de seleções terá castas ainda mais imóveis. A única possibilidade desse encontro será, vejam só, a Copa – ainda mais a partir de 2026, quando ela contar com 48 seleções. E aí, ao final de cada uma delas, os analistas vão dizer: é, foi bacana, teve muita emoção, mas o nível do jogos deixou a desejar, teve retranca demais, pouca ousadia, muito gol de bola parada.

Não é novidade na história da Fifa que o interesse financeiro esteja acima do técnico. É assim desde que a entidade tomou um banho de loja com a eleição de João Havelange, ganhando patrocínios bilionários e triplicando o tamanho da Copa em menos de 50 anos – de 16 seleções em 1978 para 48 em 2026. O problema é que, desta vez, os cartolas parecem andar em círculos, apostando só no carisma como garantia de sucesso de seu principal produto. No longo prazo, pelo próprio risco de esvaziar a Copa do Mundo, tem um cheiro enorme de ser um tiro no pé. A conferir.

Fernando Cesarotti, 40, é jornalista e professor universitário. Assina a coluna Geopolítica das Copas , sobre futebol e política, durante o Mundial da Rússia.

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