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Salvando o Sudão do Sul

Matem-nos com Fogo

Sudão envolveu guerilheiros separatistas numa espiral de matança por independência e milhões de dólares em petróleo.

Foto de Tim Freccia

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Até 1995, o governo sudanês não podia garantir a segurança de seus campos petrolíferos. O coronel rebelde Garang estava enlouquecendo, assim como Machar, o ex-vice-presidente, deposto sob acusação de complô e, agora, escondido nas matas do Sudão do Sul. Sua decisão, quatro anos antes, de criar sua própria fraca facção nuer, financiada por Tiny Rowland e Cartum, tinha levado o Sudão do Sul ao caos.

Em dezembro de 1995, Machar ficou sem dinheiro, apoiadores ou opções. Cartum nomeara o chefe militar ugandense Joseph Kony governador de Jonglei, e a fome, a malária e a violência dominavam o Sudão do Sul. ONGs chamavam o local de “Triângulo da Morte”. Machar fugiu então para a Etiópia, mas em vez de ser recebido como um camarada, mandaram-no embora imediatamente. Ao se recusar, foi colocado na prisão.

Em abril de 1996, incitado por promessas de apoio da China e desesperado para aumentar a produção, o Sudão assinou com Machar um acordo vago, chamado Carta Política, para pôr um fim aos ataques rebeldes contra os campos petrolíferos. Esse foi um ato de conciliação histórico, já que Garang e os grupos rebeldes têm mandado as empresas petrolíferas saírem há anos. Sua lógica era simples: o dinheiro proveniente do petróleo passava para o sul e ia direto a Cartum, bancando a guerra da capital contra o sul.

Esse acordo de paz temporário permitiu a Arakis (a empresa petrolífera que assumira as explorações depois da Chevron ter se mandado) a solicitar investimentos de empresas petrolíferas de fora, que concordaram em custear um oleoduto em direção ao norte, até Porto Sudão. Eles criaram a Greater Nile Petroleum Operating company, com a Arakis reivindicando uma fatia de 25%, a China National Petroleum Corporation se dando bem com uma parcela de 40%, a Petronas da Malásia levando 30% e deixando de resto para a Sudapet, do Sudão, somente 5%.

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Depois desse acordo, o Sudão começou a trocar algodão com a China, seu novo parceiro petrolífero, por US$ 400 milhões em armas, incluindo mísseis Scud. No final das contas, a China levou trabalhadores, tropas e conselheiros para o país, onde eles trabalharam com sudaneses do norte nas áreas petrolíferas do sul. Nenhum sul-sudanês foi empregado. Grupos de direitos humanos estimaram que a China exportou 7 mil prisioneiros para que se unissem aos 20 mil enviados anteriormente. Enquanto isso, os financiamentos de Cartum a várias facções fragmentadas, incluindo a de Machar, haviam destruído qualquer senso de unidade num estado rico em petróleo. As facções lutavam umas com as outras.

A estratégia do Sudão de “aqtul abid bil abid”, (matar um escravo com um escravo) estava funcionando. Enquanto Machar e Garang lutavam entre si, suas forças decaíam e suas aspirações políticas regrediam até se tornarem uma matança intertribal. Para intensificar o caos, Cartum empregou exércitos de invasores árabes chamados de Baggāra, o Exército de Resistência do Senhor, de Kony, e uma longa lista de chefes militares independentes nuer e dinka, cuja única missão era infligir devastação e empurrar os civis para fora dos campos petrolíferos e para dentro do esquecimento.

Não foi coincidência que, em dezembro de 1996, no meio da campanha de destruição de Cartum e da limpeza étnica, a Arakis anunciou que havia descoberto mais petróleo e gastaria em torno de US$ 1 bilhão para explorar esse achado e construir um oleoduto para levar o petróleo para longe do sul, até Porto Sudão.

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Mercenários Baggāra em Darfur e em Kordofan foram então despachados para atacar, matar e dispersar os dinka, e os remanescentes da iniciativa mujahedin amplamente mal-sucedida de bin Laden foram levados para dentro de Bentiu para salvaguardar os campos petrolíferos.

A política de Cartum de proteger personagens duvidosos como bin Laden, Carlos, o Chacal e outros fugitivos internacionais havia resultado em duras sanções por parte dos EUA. Em 3 de novembro de 1997, o então presidente Bill Clinton emitiu a Ordem Executiva 13067, dizendo que “as políticas e as ações do governo do Sudão, incluindo apoio contínuo ao terrorismo internacional, esforços constantes para desestabilizar governos vizinhos e a prevalência de violações de direitos humanos, incluindo a escravidão e a proibição de liberdade religiosa, constitui uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional e à política exterior dos Estados Unidos”.

Embora isso não salvasse o povo do Sudão do Sul – que havia enfrentado mais uma década de fome, deslocamento e sofrimento não mensurado –, os rebeldes estavam prestes a ter uma mudança em seus destinos. Em 1995, o governo sudanês focou seus esforços militares nos campos petrolíferos, enquanto alguns elementos do SPLA (Exército Popular de Libertação do Sudão) começaram a capturar tropas equipadas com recrutas mal treinados. Até 1997, os insurgentes sulistas haviam capturado quase toda Bahr al Ghazal, a parte oeste do que é hoje o Sudão do Sul.

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No entanto, essas facções rebeldes não incluíam Garang e seu exército dinka. Machar também não comandou lá grande poderio militar na época. Mas Hasan al Turabi alegou que o ex-vice-presidente deveria ser o principal negociador dos rebeldes com o governo, o que instantaneamente levou a maiores discussões e defecções do processo de paz.

Muitos no sul viram o Acordo de Paz de Cartum de 1997 como uma rendição levemente velada, sem potência e sem caminho claro para sua implementação. Mas qualquer que fossem suas fraquezas, o acordo de fato instalou a base para um referendo sobre a independência, algo que Cartum supôs que nunca aconteceria.

O único grande líder rebelde que resistiu a ficar do lado de Cartum foi Garang. Apesar de gabar-se de que tomaria Juba, ele foi absolutamente incapaz de manter qualquer cidade, posição ou fronteira estratégicas.

Desde que o governo assinara o acordo para garantir a produção contínua de petróleo, havia instalado Machar e seus homens da SPLA para providenciar segurança às Forças Armadas Sudanesas nos campos petrolíferos. O acordo de paz frustrado também permitiu ao governo e aos chineses que começassem a construir o oleoduto, que extrairia com um sifão o petróleo do sul por um conduíte de 1.540 quilômetros até Porto Sudão.

John Garang celebra a assinatura do tratado de paz de 2005 que pôs fim a 22 anos de guerra civil do Sudão. Fotos de SIMON MAINA/AFP/Getty Images

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Até 1999, o oleoduto começou a levar o petróleo a tanques, gerando um lucro muito necessário para Cartum. Ao longo do ano seguinte, o governo gastou mais de US$ 250 milhões, quase metade de sua renda com o petróleo, simplesmente para cobrir os custos de seu exército e de suas milícias contratadas no campo.

Foi em 2000 que Machar, frustrado pela falta de qualquer implementação real do acordo de então três anos, decidiu abandonar o apoio a Cartum e criar mais um movimento rebelde. E numa sensação estranha de déjà vu, teve a mão de uma nova esposa: a americana Becky Lynn Hagmann, de Minnesota. Eles casaram em 2000. Embora pouco tenha sido reportado a respeito dela, Hagmann, agora com 50 e tantos anos, era como as outras mulheres do Machar: sua conselheira pessoal.

Ela é uma cristã devota que anteriormente foi casada com o pastor de uma igreja local e tem três filhos daquele casamento. Como Becky Machar-Teny, ela administrou o Centro pela África e em seguida se envolveu com a construção do estado em Juba. Seus esforços cristãos incluíam tentar montar internatos e outros projetos. Depois que o Sudão do Sul ganhou sua independência, ela morou em pequenas hospedarias em Juba e ajudou o marido em vários projetos políticos.

A decisão de Machar de se separar do governo também espelhou seu tempo com Emma McCune. Seu objetivo era encurtar as rédeas das conversas de paz infindáveis, mas suas estratégia acabou por destruir a unidade do sul e entrar no jogo de “dividir e conquistar” de Cartum. Este conseguia agora enviar tropas do norte para os campos de petróleo no sul por estradas recentemente construídas. Esse estágio da guerra incluiu atacar pastores nus usando árabes a cavalo e bombardeá-los usando aeronaves. Saques, assassinatos, incêndios, estupros e sequestros eram as armas do terror.

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Apesar de Machar ter o maior número de soldados e ser o líder rebelde mais conhecido, ele estava perdendo pois o sul não conseguia ordenar e dividir seus escassos recursos. O líder fugiu para Nairóbi com seus comandantes em 2000, depois de um temporada de seca desastrosa no país, e tentou persuadir a embaixada dos EUA a apoiá-lo contra Cartum. Os americanos recusaram, insistindo que ele e o governo tinham de resolver suas diferenças. Apesar de haver esforços em Washington para posicionar Garang como o novo Yoweri Museveni, de Uganda, ou Paul Jagame, de Ruanda, as sanções impostas pelos americanos impediam a entrega de ajuda ou apoio público. Tiny Rowland havia morrido em 1998, e Cartum estava essencialmente falido. O petróleo era praticamente a única potencial fonte de renda.

Até 2004, mais de 90% do óleo do Sudão estavam sendo extraídos por empresas não-sudanesas. A Greater Sudan estava produzindo 304 mil barris por dia em 2004 - 80.000 deles de produtos refinados. Um segundo oleoduto foi construído para atender à capacidade aumentada de refinação em Cartum. Muita grana do petróleo estava prevista para o país.

Até o começo dos anos 2000, começou a cair a ficha do potencial da riqueza do petróleo compartilhado, ofuscando as queixas étnicas que já existiam há muito tempo. Era claro para o norte e para o sul que essa guerra sem fim nunca permitiria ao Sudão ou mesmo aos grupos étnicos do sul terem paz ou prosperidade. Grupos de direitos humanos e a mídia também começaram a deixar claro que algo muito escuro e ruim estava acontecendo nas áreas petrolíferas do Sudão.

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Em janeiro de 2002, Machar e Garang colocaram suas vinganças pessoais de lado e se reconciliaram, juntando suas facções que haviam estado em guerra por muito tempo. Outros grupos rebeldes também começaram a ver benefícios na paz em vez da guerra.

Em janeiro de 2005, Garang e Ali Osman Taha assinaram um Acordo de Paz Abrangente. A Segunda Guerra Civil Sudanesa tinha oficialmente terminado e os termos do cessar-fogo acordados depois de três anos de negociações. Depois de anos de tentativas frustradas, facadas nas costas e lutas internas, e um completo desastre, parecia que esse acordo de paz apoiado pelos EUA e endossado por Bush chegaria para ficar. O tratado integrava muitos dos pontos cuidadosamente formulados por Machar e outros no Acordo de Paz de Cartum de 1997, e aquela combinação impotente de repente ganhou potência. Haveria uma votação e as pessoas decidiriam se elas seriam independentes ou se ficariam com Cartum.

Garang não viveu para ver um Sudão do Sul independente. Em 30 de julho de 2005, ele morreu num acidente de helicóptero durante uma visita para conhecer Museveni em Uganda. Salva Kiir, militar e seu segundo comandante, assumiria o papel de liderar o maior grupo étnico do país, os dinka.

Depois de sua morte, a dominância étnica dos dinka garantiu que Kiir fosse eleito presidente. Os nuer, o segundo maior grupo étnico, eram representados por Machar, que se tornou vice-presidente do governo do Sudão do Sul e copresidente do SPLM do Comitê Político Junta Executiva. As aparições públicas dos dois homens podem ter parecido agradáveis e refinadas, mas os anos de animosidade entre eles nunca desapareceu.

Apesar da morte de Garang, a paz foi mantida. O mundo se regozijou à medida que um quadro para criar o país do Sudão do Sul nasceu. A futura renda do petróleo estava destinada a compensar Cartum e a gerar fundos para construir uma nova nação. Uma grande fatia dela estava comprometida diretamente à região natal de Machar.

Essa junção de antigos oponentes étnicos, para não falar do norte e do sul, serviu como prova de que boas intenções, dinheiro e algumas torções de braço diplomáticas podiam trazer mudanças positivas e paz para a África. Parecia que o mundo tinha finalmente salvado o Sudão do Sul.

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Traduzido por: Julia Barreiro