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Bati um Papo com Moleques Abaixo da Maioridade Penal

Falei com os “de menor” sobre sonhos, desejos, família, a paixão pelo funk ou pela igreja.

Fui várias vezes ao Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto de São Paulo para conhecer os meninos que constituem uma das pautas mais controversas no debate eleitoral: a redução da maioridade penal para 16 anos e o aumento das penalidades a jovens infratores. Falei com os "de menor" sobre sonhos, desejos, família, a paixão pelo funk ou pela igreja.

Todas as fotos foram feitas pelo Felipe Larozza.

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Um moleque de 18 anos bate com força na porta de uma casa verde-choque na zona Oeste de São Paulo. Encosta o olho no buraquinho do meio e bate mais uma vez, como se fosse um ritmo de funk. "Já vou", responde uma voz firme de mulher, que desce para abrir. É uma das educadoras de um centro que atende 80 menores que estiveram privados de liberdade e previamente detidos na Fundação Casa. Ela o espera com bolo, suco, documentos para assinar e paciência para escutar suas preocupações e seus planos. Fica contente ao ouvir que ele se apresentou na ONG onde presta serviços para a comunidade, que já foi trabalhar e que fala com felicidade sobre seu filho de um ano. "Não se perca outra vez! Lembra sempre os 3 f: foco, força, fé".

Alex* pega uma cadeira e se junta à oficina de pipas que um dos educadores preparou para hoje. "Quem inventou a pipa?", o educador pergunta aos cinco meninos presentes. "Lá na China. Tem um filme, ó. Eu já o assisti, já. É um filme internacional", diz Alex, elevando a sobrancelha com um cortezinho. "Isso. A pipa nasceu na China antiga, se utilizava no exército para sinalizar". "Tipo na quebrada, quando anuncia que vem a polícia", completa Danilo*, rindo. "Cada quebrada é diferente".

Da pipa, o papo se lança a voar, aos sonhos, à liberdade e à opressão. Com as varetas e o papel seda nas mãos, Alex gesticula: "Eu gosto de cantar funk na hora. Eu gosto de cantar a realidade sobre o que acontece; eu quero falar verdade, mano. No final do ano, vou para a praia e quero fazer um vídeo, quero fazer minha música."

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Quando o escuto, me lembro de Tony*, um moleque que conheci no primeiro dia ao chegar no centro de medidas socioeducativas. Ao perguntar-lhe qual é seu maior sonho, ele me explicou sua filosofia de forma bem clara: "Eu quero muito uma moto, mas não posso dizer que é um sonho. Esse é um desejo. Um sonho seria ter uma família, filhos, uma casa. Quando era mais jovem, tinha esse sonho. Agora, não o tenho mais. A droga mudou minha cabeça".

Perguntei para João Clemente de Souza Neto, um sociólogo especialista nesse assunto, quais são os fatores que contribuem para que os moleques cometam delitos. "A pobreza, a desigualidade social, a falta de afeto. Ele rouba para garantir o desejo; o sonho, não tem como: este é um projeto de vida. São meninos que vêm de uma vida sofrida, o pai está fora de casa. Quando a pessoa sofre uma privação de afeto, a vida toda pode ser desorganizada."

Enquanto os outros meninos amarram as pipas, David* está lendo em voz baixa umas frases de trava-línguas. Tem 15 anos e sonha ser pregador. Gostaria também de apresentar um programa de televisão. Falaria sobre Deus. Depois de sair da Fundação Casa, David voltou à Igreja Evangélica. "É um obstáculo não ter pai, todos meus amigos têm. Se fosse vê-lo pela primeira vez, eu o trataria do mesmo jeito, mesmo não tendo me criado desde pequeno. Quem foi que me criou foi minha mãe, sozinha. Mas, se eu o visse hoje, ia abraçar, ia beijá-lo, ia esquecer do passado e iria para o presente. O presente estaria aí, não é? Com ele."

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David chegou à Fundação porque também quis satisfazer um desejo. "Pensava fazer dinheiro para pagar minhas coisas, porque só com o dinheiro da minha mãe não ia dar certo. Minha calça, um tênis Adidas que está na moda, jeans, uma blusa de firma."

Ele me lembra Luís*, que conheci numa visita anterior e que me explicou: "Na quebrada, você vale o que você tem." Tentei completá-lo e disse: "…o que você tem por dentro". Mesmo em tom amistoso, ele me pôs em meu lugar. "Não, moça, por fora. As minas olham para sua moto, seu telefone, sua roupa. Este é o Brasil, mundo moderno." Depois, ele fez uma flor de papel e falou que ia entregar para uma mina. Luís me contava que tem de obter rapidamente tudo o que ele deseja, porque "o rolê" não espera.

Sobre o tempo dentro da Fundação Casa, os moleques não falam em meses ou semanas: informam o número exato de dias que ficaram presos. Quarenta e quatro dias. Com as mãos juntas e cabisbaixo, Bruno* é o único que afirma ter ficado "uma semana. O mais difícil lá dentro era tomar banho com outros dez meninos ao mesmo tempo". Eles contam que lá tem regra em tudo. Tem que andar só com as mãos para trás, pedir licença para falar, não olhar para ninguém.

O sociólogo João Clemente de Souza Neto me explica o que acontece com esse regime. "Na Fundação Casa, acontece uma pedagogia de humilhação. Nenhum ser humano pode ser humilhado. Lá, acontece isso. A pedagogia de humilhação constrói a perversidade. A proposta ideológica e cultural é igual como a do campo de concentração".

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Pedro* conta como, durante a noite, para ir ao banheiro, tinha de pedir permissão, sem sair da cama, aos agentes penitenciários que ficavam de olho no quarto, onde havia outros 70.

"Mesmo que o Governo fale que não é um presídio, é. Oitenta por cento dos meninos da Fundação Casa foram lá por função de drogas. O peso da medida é muito grave para o que alguns fizeram", frisa João Clemente de Souza Neto. No Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, os educadores abrem espaço de diálogo com os meninos, tentando fazê-los rever e reorganizar suas vidas e ajudá-los a buscar uma profissão. Saí dali achando que a redução da maioridade penal é o contrário disso.

Delia Marinescu é graduada em Jornalismo na Romênia e vive em São Paulo há nove meses. Colaborou com a VICE da Romênia e com outras revistas e rádios, produzindo matérias da Romênia, Jordânia, Cazaquistão e Espanha.

*Para a privacidade dos meninos entrevistados, os nomes usados não são reais.