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Salvando o Sudão do Sul

Calmo de Morrer

Vimos dinkas mortos em seus leitos de hospital, meninas estupradas e descartadas como lixo, idosos executados, uma velha senhora com seu cérebro explodido e vários corpos empalados pelo traseiro.

A fila de pessoas deixando Malakal não tem começo nem fim. É um fluxo contínuo de humanidade fugindo da cidade destruída. Todas as fotos por Tim Freccia

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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No dia seguinte, a cidade devastada de Malakal parece tranquila – “tranquila” significa estar com menos saqueadores, tiros e prédios em chamas. Acordo antes da aurora, vendo centenas de civis tentando embarcar num único ônibus caindo aos pedaços. Eles formam um enxame ao redor do automóvel, entregando sacolas e trouxas e subindo pela porta aberta. Um homem no teto pega malas alheias, lançadas para o alto por seus donos. Exasperado, o motorista para a 91 metros de distância, mas mais pessoas se enfiam dentro do ônibus lotado.

Uma luz azul ilumina a cidade. Alguém está disparando munição antiaérea contra nada em particular. Uns 45 metros adiante, um prédio arde em chamas, e o sol tem dificuldades de passar pela coluna de fumaça.

Às 6h uma corneta é tocada por alguém perplexo demais para usar até mesmo o mais simples dos instrumentos de sopro. Rebeldes andam aos tropeços envoltos em lençóis. Alguns já seguiram para um campo próximo, onde abaixam suas calças e cagam ou escovam os dentes cuspindo no chão. Todos têm aquela tosse profunda, que é a marca da poeira, do fogo, da graxa e da infecção respiratória.

Como um bêbado acordando depois de uma farra, a cidade e seus habitantes restantes parecem sóbrios, confusos e envergonhados. Ninguém parece saber se as tropas do governo se retiraram por ora ou se estão lá fora planejando um contra-ataque.

À medida que a luz aumenta, vejo uma aglomeração inexplicável tentando passar através de um campo aberto para sair da cidade. Não consigo ver o início ou o fim da fila. É infindável. É cinemático. É bíblico.

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Cada pessoa está carregando alguma coisa. Um homem transporta um pedaço de tábua, outro arrasta uma bicicleta. A maioria tem colchonetes e cadeiras de plástico. Parece crítico para todos levar cadeiras de plástico para fora de Malakal – numa terra de árvores e juncos, a cadeira de plástico de US$ 3 é considerada valiosa.

O Exército Vermelho está escoltando as famílias encurraladas para fora do complexo da ONU. Começo a contar, mas já que a fila não tem fim, só posso supor que estou vendo 5 mil  pessoas passando a cada hora. Os refugiados caminham em direção ao sol nascente tremeluzindo como uma miragem vaga. Todos eles têm um dia inteiro de caminhada pela frente, sob um calor muito intenso, até chegar a um acampamento junto ao rio a 19 quilômetros de distância. O vasto número de soldados partindo faz isso parecer menos uma vitória do que uma retirada.

Nosso genial general Gatkuoth é o centro das atenções na nossa casa de pau a pique. Do lado de fora, bebês correm em torno de suas mães. Soldados entram e saem do complexo procurando seus amigos ou tentando descobrir o que está acontecendo. Não há rádios ou outros meios de comunicação. Até o Thuraya do general está nos deixando na mão. Hoje ele quer que demos uma volta pela cidade libertada de Malakal, para provar que ele a tomou definitivamente (Gatkuoth perderá Malakal em alguns dias… e depois a tomará de volta).

Na manhã seguinte, membros do Exército Branco partem em direção ao sul com suas famílias e com pertences debaixo do braço.

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Um jato sobrevoa a cidade exatamente às 7h28. Aeronaves podiam ser ouvidas sobre nossas cabeças na noite anterior, e ninguém pareceu perturbado com isso. Nessa manhã os rebeldes estão atirando para o ar suas armas e seus lançadores de granadas propelidas por foguetes (RPG, na sigla em inglês) novamente, já que eles finalmente têm um alvo, embora ele esteja completamente fora de alcance. A sensação de tensão à flor da pele foi substituída por uma confusão mental.

Um novo e eloquente amigo nosso, um nuer chamado James, descobriu que sua casa foi queimada até o chão. Sua esposa e crianças já estão no acampamento da ONU. Ele voltou apenas para ver o que sobrou de seus pertences, o que não é muito. A caminho da cidade, passamos por vilas dinkas queimadas e abandonadas, num estado tão ruim quanto o de Malakal, se não pior. James sabe o que esperar em seguida, assim como imagina não ser nada bom. “O inimigo não tem nada pelo que lutar”, frisa. “Estamos defendendo a nós mesmos e lutando por nossa terra.”

Simon, um estudante de 26 anos, é um outro morador de Malakal que subitamente precisa encontrar um novo lugar para viver. “Isso é uma coisa antiga, os dinka e os nuer”, ele diz, enquanto um soldado ao fundo lê dezenas de nomes de uma lista de chamada à frente de recrutas em uniformes diferentes que estão em pé. O estudante nota que muitos membros do Exército Branco são na verdade ex-membros do SPLA ou até atuais que simplesmente abandonaram seus uniformes para participar de um saque recreativo.

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Riek Machar tem apenas três condados no norte por conquistar antes de controlar o petróleo. Embora Malakal essencialmente lhe dê o domínio do Nilo, ele e seus homens ainda têm que alcançar o coração das áreas produtoras desse óleo em Paloch e Bentiu, a fonte do dinheiro de seu rival, o presidente Salva Kiir.

Nosso Toyota saqueado chega, e subimos nele. O general, depois de discursar para alguns rebeldes, senta no banco da frente. Ele quer castigar as tropas que vagam sem rumo e empurrá-las para o norte. Mas o Exército Branco está muito ocupado conferindo seu espólio, dando tiros de armas para o ar e tirando suas famílias dos campos.

Ao darmos a nossa volta com Gatkuoth, ele para e conversa com os vários agrupamentos de membros desse exército reunidos em pequenos acampamentos. Muitos deles exibem bandeiras tribais do lado de fora de suas vilas. O general ordena aos guerrilheiros que se mexam e continuem pressionando a linha frontal em direção ao norte. Os homens retrucam, exigindo comida, munição e água. Outros querem saber se trouxemos médicos. Há muitos feridos e nenhum cuidado médico.

Mulheres carregam água de um dos poucos poços em funcionamento. O Nilo está poluído com corpos.

“Por que vocês ainda estão aqui?”, pergunta Gatkuoth. “Precisamos mandar as tropas [de Kiir] para bem longe, para que nossas crianças fiquem a salvo.”

Cada grupo que visitamos tem um bom estoque do que parece ser bens saqueados. Os espólios que os rodeiam incluem uma variedade de geradores, motocicletas e suprimentos domésticos. O Thuraya do general continua a tocar, mas ele está tendo dificuldade em atender chamadas. Sinal ruim. Ele rudemente dá o telefone para seu ajudante. A fila para o cumprimentarse torna cada vez mais contínua, e finalmente ele diz para o motorista dirigir em direção à cidade.

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As ruínas esfumaçadas de Malakal provam que o tédio e a vingança substituíram o propósito estratégico. Apesar de os feridos em outras partes precisarem de um médico, um grupo está botando fogo em uma clínica.

Tudo ao nosso redor é uma evidência clara da matança extrajudicial de civis e de outros crimes de guerra horrendos. Dinkas mortos em seus leitos de hospital. Jovens meninas estupradas e descartadas como lixo. Idosos mortos a tiro. Uma velha senhora com seu cérebro explodido. Um homem mais velho com uma trouxa de milho deitado de cara na terra. Rebeldes andam sem notar a carnificina, animados em posar para a foto da vitória.

Traumatizada, uma velha senhora shilluk senta catatonicamente no meio da fumaça e do fogo. Eu dou a ela algo para beber e algum dinheiro. Ela apenas senta e olha para o vazio. O general está insatisfeito e seus guarda-costas balançam as cabeças. Não posso salvá-la.

Um dos acompanhantes do nosso passeio, um homem prestativo com uma voz grave e melodiosa que diz ser um oficial de informações do Exército Branco, responde qualquer pergunta que tenho com uma resposta pré-definida: “Nesse momento não tenho informações necessárias para responder essa pergunta”. Ele explica que estudou Teologia no Canadá até dois anos atrás. Viveu em Calgary, Toronto, e em muitas outras cidades do país. Ele não gostou de lá, então voltou para casa e trabalhou com ONGs em Nasir. Ele não tem orgulho do que vê, ou ao menos do que nós estamos vendo. “Isso é guerra de verdade”, destaca. Pergunto a ele sobre a contagem das tropas e outras coisas. Ele se desculpa e diz: “Estamos tendo problemas para acessar informações do lado de lá. Ainda não somos tão profissionais.”

Caminhando, começo a calcular os civis mortos. Paro quando conto sete num intervalo de apenas alguns minutos por me dar conta de que é inútil. Ninguém nunca admitirá tê-los matado. Ninguém os contará. Não haverá túmulos. Os soldados encabuladamente insistem que os civis abatidos “foram pegos no fogo cruzado”. A maioria das vítimas está contorcida, desfalecida, as escassas posses com que tentaram escapar alinhadas na rua, menos o que já fora saqueado. Um homem está de cara no chão, com sua traseira apontada para o ar. Violência como essa só gera mais violência à medida que as pessoas descobrem como seus parentes foram mortos. Quando a imprensa chegar com as ONGs, o mundo lerá matérias sobre abutres e o cheiro de carne estragada e anotará os relatos das testemunhas sem dar importância. Estamos aqui em tempo real. Como uma criança pega no flagra, o Exército Branco não tem nada a dizer, nenhuma desculpa esfarrapada.

Os soldados mortos que vemos estão assim há um dia, num estado mais avançado de decomposição – não inchados, mas duros e escurecidos. Eles estão aqui há talvez um dia ou dois a mais do que os cadáveres de civis. Os locais foram virados e estranhamente colocados na posição de rigor mortis; suas roupas de baixo, puxadas para baixo, revelando os grandes cortes de quando ainda estavam vivos e implorando por misericórdia: mutilações causadas pelas lanças e baionetas estilo russo. Alguns dos corpos estão próximos ao rio, um com uma lança partida enfiada em seu traseiro. Outro está congelado no tempo, como se ainda implorasse por clemência de seus algozes. Um soldado está deitado e queimado de tal forma que se tornou irreconhecível. Outros ainda estão semi-submergidos no rio. Só os crocodilos sabem quantos morreram aqui.

Traduzido por: Julia Barreiro

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