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Como Ameaçar de Morte a Presidente da República (e Ficar de Boa)

Num só post, Fernandes flertou com pelo menos meia dúzia de crimes: do Estatuto do Desarmamento ao Código Penal, passando pelo Estatuto dos Militares, pelo Código Penal Militar e, finalmente, pela Lei de Segurança Nacional. Mas ele está de boa.

Talvez você tenha bronca de alguém próximo: um colega de trabalho, um vizinho ou, quem sabe, de uma pessoa que tenha sido escolhida circunstancialmente num domingo qualquer por mais de 50 milhões de brasileiros para governar o país durante quatro anos, num cargo que podemos, na ausência de nome melhor, chamar de "presidente da República".

Você sabe que nós vivemos numa democracia, as redes sociais estão aí, seus amigos curtem seus posts, você odeia a presidente, lá fora o dia está lindo, então, por que, afinal, não fazer uma foto de si mesmo vestindo uma farda do Exército Brasileiro, segurando uma bala de fuzil, dizendo: "Dilma, essa (bala) é pra você. Eu estou pronto! Só esperando o toque da corneta"?

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Esse encadeamento bastante lógico das ideias foi o que levou o cidadão Renato Paschoal Fernandes a ameaçar de morte publicamente a recém-reeleita presidente da República, Dilma Rousseff (PT), no dia da eleição, dia 27 de outubro. Ele postou uma selfie exatamente como descrito acima, com a mesma frase. A coisa saiu originalmente num site chamado Plan​tão Brasil e, desde então, alçou voo nas redes, junto com uma enxurrada de outros posts racistas, fascistas ou simplesmente ignorantes a respeito da democracia e, mais precisamente, do PT.

Num só post, Fernandes flertou com pelo menos meia dúzia de crimes: do Estatuto do Desarmamento ao Código Penal, passando pelo Estatuto dos Militares, pelo Código Penal Militar e, finalmente, pela Lei de Segurança Nacional. Mas ele está de boa. Afinal, como vem dizendo desde que a história explodiu, tudo "não passou de uma brincadeira", a bala não passava de um chaveiro etc.

O jovem tem uma ideia bastante limitada de como funciona um país livre. Em mensagem à VICE, ele disse: "Se depender da minha autorização para publicação (da matéria), eu não autorizo … Só para deixar registrado". Nós "registramos" e replicamos: "Não cabe a você decidir se a imprensa pode ou não pode publicar a história. Trata-se de um fato público, de interesse público, envolvendo suspeita de violação da Lei de Segurança Nacional. A história será publicada. O que eu lhe pergunto é se o senhor gostaria que constassem suas palavras e suas informações no texto, ou se dizemos simplesmente que o senhor não quis dar entrevista." Ele não respondeu, razão pela qual não saberemos mais sobre o que Fernandes realmente pensa ao longo do texto.

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Por mais que espere, o "toque da corneta" não virá para o jovem porque ele não é militar. No máximo, Fernandes ouvirá o som miado de um teclado Cassio conclamando ao vexame. Apesar de estar fardado na foto, o jovem apenas passou pelo CPOR em 1998, em Minas Gerais. A sigla significa Curso de Preparação de Oficiais da Reserva e não faz dele um militar da ativa. Quem diz isso é o Centro de Comunicação Social do Exército: "O senhor Renato Paschoal Fernandes serviu ao Exército, como aluno do CPOR de Belo Horizonte, no ano de 1998 e, portanto, não é militar da Força Terrestre. O porte não autorizado de munição de uso restrito enquadra-se na Lei 10.826, (Lei do Desarmamento). Cabe a justiça comum julgar quanto à ocorrência de crime ou contravenção."

A mesma opinião vem do presidente da Justiça Militar de São Paulo, Paulo Casseb: "O simples fato de alguém ter feito no passado o CPOR não o torna militar no presente, segundo pode ser verificado no Estatuto dos Militares (Lei nº 6880/80). O aluno do CPOR só é considerado militar durante o curso. Não sendo considerado militar, a sua sujeição ao Código Penal Militar somente seria possível, em tese, na condição de civil, nos estritos termos previstos no inciso III do artigo 9º do CPM (se cometer crime contra a Administração Militar, por exemplo). Diante disso, na esfera penal militar, seria possível cogitar apenas a prática do crime previsto no artigo 172 do Código Penal Militar, qual seja, 'usar, indevidamente, uniforme, distintivo ou insígnia militar a que não tenha direito', com pena de detenção de até 6 meses. Qualquer outra conduta criminosa que o comportamento dele possa ter gerado, refere-se à legislação penal comum, sujeitando-se à Justiça comum."

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Na Justiça comum, Fernandes também pode ter problemas. "Há, pelo menos, um crime previsto no Estatuto do Desarmamento. Bala de fuzil, em forma de chaveiro ou não, é de uso privativo das Forças Armadas", disse o jurista Marco Aurélio Florêncio, professor de Direito Penal da Universidade Mackenzie, de São Paulo.

O artigo 16 do Estatuto do Desarmamento diz que: "Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar" é crime punível com multa e prisão por 3 a 6 anos.

Mas a "brincadeira" de Fernandes vai além. Por dirigir-se à presidente da República, chefe do Poder Executivo, ele pode ainda ter problemas com pelo menos dois artigos da Lei de Segurança Nacional, alerta o professor de Direito da PUC-SP, Álvaro de Azevedo Gonzaga.

O artigo 18 diz que é crime "tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados". Já o artigo 22 proíbe "fazer, em público, propaganda: de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa; de guerra; ou de qualquer dos crimes previstos nesta Lei (como o artigo 18 mencionado antes)."

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"Brincadeira ou não, a situação é grave. Pode estimular outras pessoas a praticarem esse ato de 'humor'. Isso só enfraquece a democracia, faz do Exército uma caricatura e não avança em nenhum debate político que possa melhorar o país", disse Gonzaga.

Não apenas Fernandes corre o risco de processo, mas os amigos que interagiram com o conteúdo, estimulando a ameaça, também: "Pessoas que curtiram e compartilharam o conteúdo original feito por ele também podem ser responsabilizadas. Muitas vezes as pessoas esquecem os impactos de suas condutas digitais e acreditam que apenas o primeiro é responsável, mas quem compartilha também é porque aumenta o dano", disse a advogada Isabela Guimarães, especialista em Direito Digital.

Mesmo com problema pra chuchu, Fernandes ainda está de boa. A VICE questionou o Ministério Público de Minas Gerais sobre os supostos crimes, mas não obteve resposta. No Ministério da Justiça, protocolamos consulta semelhante, registrada sob o número 123677102014-5, mas nada nos foi enviado, depois de dois dias de espera.

Vai ver que é tudo brincadeira mesmo: a farda, o militar, a bala, a ameaça e, por fim, a vista grossa dos órgãos da Justiça a ameaças como essa. Enquanto isso, uma jovem disse ter sido estuprada no Rio de Janeiro depois de uma discussão de rua sobre política. Ainda durante a campanha, dois jovens foram agredidos na PUC de São Paulo por eleitores de Aécio Neves.

Nas redes, as ameaças e ofensas são cada vez mais pesadas, e os pedidos de impugnação, impeachment, deposição, pululam. Um militar fardado postar uma ameaça direta à presidente, segurando uma bala de fuzil, pode ser o auge do horror. Mas também pode ser só "uma brincadeira" se comparada ao que ainda poderia vir daí.