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Fiquei uma Semana sem Água na Minha Casa

Nossa repórter encarou uma semana totalmente sem água para sentir na pele as verdadeiras consequências da crise que ameaça dominar São Paulo.

No começo do ano, a Anna apurou a história da água - envolvendo o governador Geraldo Alckmin, a Sabesp e o Sistema Cantareira - que ameaça deixar grande parte da população paulistana sem o santo líquido encanado. Pedimos que ela passasse pela experiência de uma semana totalmente sem água, então, pra sentir na pele o drama e as consequências da parada. Depois de meses enrolando para colocar a proposta em prática, eis o resultado dessa experiência.

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DIA 1

Quando meu despertador tocou às 7h da manhã com o aviso “BOM DIA, HORA DO BANHO”, meu primeiro impulso foi o de me levantar. Foi então que eu me lembrei que aquele dia seria o primeiro de imersão total e profunda na ideia de que, muito em breve, nós paulistanos ficaremos completamente sem água em nossas casas. É claro que, na mesma hora que liguei todos os pontos, percebi que tinha duas opções: dormir mais 1h ou buscar por uma alternativa.

A preguiça falou mais alto e eu decidi aproveitar as condições de primeiro dia de experiência para pular a parte de “busca por uma alternativa para o banho matutino”. Meu cabelo estava OK, cheiroso e levemente seboso na franja. A segunda parte do problema viria a seguir: escovar os dentes. Peguei um chiclete de menta e segui para a redação, que felizmente não fica em uma zona abastecida pelo sistema Cantareira. Claro que isso significa que eu tenho mais sorte do que muita gente que mora e trabalha na mesma região – mas nem tanto assim. Os outros dois sistemas que abastecem a cidade de São Paulo não estão tão melhores que o da Cantareira. Essa facilidade não existiria se essa não fosse uma experiência de uma semana.

Cheguei em casa cansada demais pra me preocupar com a falta de água. Tive vontade de fazer xixi, mas não teria como dar a descarga. Mentalizei um vasto deserto - juro que funcionou - e fui dormir.

DIA 2

Dormi o menos agasalhada que eu pude, pra não acordar embalada pelo suor. Já bastava o sebo natural que ia se formando no meu cabelo. Levantei, encarei o espelho. Nojento. Resolvi ir até o mercado comprar água, que eu reutilizaria o máximo possível. Mas pera… reutilizar água? Passei a tarde toda procurando por dicas, conselhos, experiências de reuso desse precioso líquido dentro de casa. Não achei nada relacionado às minhas necessidades - a maioria das matérias falava sobre água das chuvas e, se fosse o caso, não haveria a necessidade de se fazer uma experiência como essa. OK, eu teria que improvisar conforme as situações fossem surgindo. O que, sinceramente, me deu um puta de um receio. E uma vontade estranha de me jogar numa piscina cheia de água clara e cristalina.

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Outra coisa: quanto será que custa água engarrafada? Nunca precisei comprar uma grande quantidade de garrafas (ou aqueles galões de cinco ou seis litros), mas como a ideia aqui não era ostentar, tive que riscar o item “comprar uma porrada de água no mercado” da minha lista. Teria que me virar com dois galões grandes, o que não representaria uma mudança tão drástica nos meus gastos normais (e ainda me forçaria a improvisar de outras formas). É claro que, com o eventual crescimento da demanda, não vai demorar muito para esse preço se tornar extremamente abusivo. Naquela semana gastei em torno de R$ 14 em dois galões de 6,25 L no supermercado mais próximo de casa. Era o preço/L mais em conta que eu encontrei e eu o achei OK - até chegar em casa.

Na real, sinceridade: dois galões não servem pra porra nenhuma. Você não consegue tomar banho-lavar-a-louça-se-hidratar-limpar-a-casa-tomar-banho-mijar-escovar-os-dentes-cagar-tomar-banho só com dois galões de água. Realmente não rola, mas eu estava determinada a descobrir como fazer isso dar certo. Sorte a minha que aproveitei a ida ao mercado para passar na farmácia e comprar lenços umedecidos, aqueles comumente usados para limpar bunda de neném. Foram a maior benção na minha vida - e na do meu namorado, que não teve que sentir (tanto) cheiro de gorgonzola saindo da minha xoxota.

Chegando em casa, achei melhor dividir os galões com uma caneta. Aproximadamente um litro por marca, pra eu não confiar totalmente no olhômetro e acabar ficando sem água. Assim, com 12,5 L e 5 dias pela frente, a tarefa parecia razoável. Não era, mas eu ia perceber isso da pior forma.

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DIA 3

Acordei de madrugada com uma vontade absurda de cagar. E agora? Não tinha pensado nisso ainda. Consegui burlar o desejo de mijar fazendo o máximo que eu podia no trabalho, mas não tinha jeito. Era daquelas vontades que chegam de repente, em que a única opção é se entregar ao gelado assento da privada. Mas eu não podia. Fiquei pensando muito sobre isso durante os dois primeiros dias, mas não tinha conseguido decidir qual alternativa cabulosamente ridícula eu iria me propor a fazer. Naquele momento, alguns pensamentos me ocorreram: “Posso fazer num balde. Mas como eu vou lavar ele depois? Não. Posso fazer num jornal. Ok, isso vai ser bastante nojento e nada prático. E se eu forrar um balde com jornal e depois enrolar e jogar fora? Até que não é tão ruim…”

Eis que, enquanto eu corria até a lavanderia do meu apartamento à procura de um balde, encontrei uma outra opção que, na hora, me pareceu a ideal. Tenho dois gatos em casa e, como você deve saber, eles fazem cocô numa bela caixa de areia. No caso dos meus bichanos, a caixa é ainda melhor. Ela é grande, parece um estádio de futebol visto de cima. Fiquei hipnotizada por essa alternativa – e, cara, eu fiz. Sim. Segurando na parede e na máquina de lavar, me agachei e fiz enquanto eles me observavam atentos. E tive que fazer mais de uma vez. Depois de me limpar, peguei a pazinha verde e dei uma misturada na areia. Desse jeito ele ficou mais seco, e, depois de uns 10 minutos, ficou superfácil de pegar o cocô, colocar num saquinho - como eu faço com o dos gatos - e jogar fora. Se você não tem um gato e, portanto, uma caixa de areia, eu recomendo comprar uma. De verdade.

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Quando eu estiver perto da morte e aquela retrospectiva louca da minha vida passar pelos meus olhos, espero não lembrar desse momento. E se você me conhece e está lendo essa matéria, não me lembre disso também.

DIA 4

Eu já estava três dias sem tomar um banho de verdade, sobrevivendo com lencinhos umedecidos e um pouco de água na pepeca e no rosto pela manhã. E, claro, com um lindo gorro pra esconder meu cabelo escroto. Aproveitei a ilustre presença do meu namorado naquela manhã pra me ajudar a tomar banho e registrar a experiência. Separei um pouco de água - tinha sobrado mais do que eu esperava, já que eu comia fora todos os dias ($$$$$) e só tomava Coca-Cola, ostentando saúde e bem-estar. A única utilidade dos galões era pra limpar o pouco de xixi que escorria pela minha perna - e o box do chuveiro - quando eu mijava. Ah, e pra matar a sede dos gatos, claro. Se eu não tivesse a sorte de mijar controladamente durante a tarde, no trabalho, os galões não teriam sido nada suficientes.

Comecei pelo cabelo. Coloquei a água numa leiteira e me debrucei na pia, jogando um pouco de água no cabelo. Nada que uma mulher não tenha feito pelo menos uma vez na vida, só que eu precisava usar o mínimo possível. Depois vinha a parte mais difícil. Entrei no box e usei um pouco de água pra me molhar o suficiente pro sabonete não grudar de um jeito escroto. Então ensaboei meu corpo todo, tirando todo o asco e pele morta; em seguida, pedi pro meu namorado ir jogando um pouquinho de água em cada parte do meu corpo. Até que deu tudo certo, apesar da sensação de alma lavada e limpeza não ter sido como o habitual.

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DIA 5

Sexta-feira… e eu não tinha feito uma refeição em casa. Já estava mais do que na hora de eu me aventurar nesse sentido e testar a verdadeira reutilização de água. Pensei em algum alimento que usasse água em seu preparo, mas que não a deixasse muito suja, para lavar os pratos depois. Macarrão e salsicha foram as primeiras opções descartadas. Que tal ovos? Se eu os deixasse pra cozinhar com casca, na panela, a água (quase) não ficaria suja. Resolvi fazer o teste.

Botei 5 ovos na panela e pronto. A ideia até que deu certo, mas eu me empolguei tanto no preparo pós-cozimento que a água utilizada não foi o suficiente para lavar os pratos, principalmente porque eu tive que lavar algumas coisas que estavam apodrecendo na geladeira. Mas a teoria foi válida, eu acho. Lavar somente um prato e um garfo com certeza teria dado certo.

DIA 6

A semana da experiência, coincidentemente ou não, antecedia o meu aniversário. Tive que contar pra minha mãe sobre a matéria e ela deu uma leve surtada, porque eu deveria estar cheirosa e bonitinha no almoço de família de aniversário no sábado. Pois é. Resolvi usar a carta “ajuda dos universitários” e pedir um banho emprestado na casa de alguém que não morasse na minha região. E foi incrível.

Num dia largado no mês ou na semana, acho que todo mundo que está (ou em breve ficará) sem água deveria viver esse momento, essa coisa de banho emprestado. Depois de tanto tempo sem sentir aquele líquido maravilhoso caindo do chuveiro, molhando meu corpo todinho, quentinho, agradável, acolhedor, eu tive vontade de chorar. Que coisa maravilhosa. A teoria de que a gente só dá valor quando perde é 100% verdade. Eu era daquelas que deixava o chuveiro ligado antes mesmo de tirar a roupa do corpo, só pra entrar no banheiro com aquele vapor estilo sauna de piscina. E isso é uma merda. Ficar sem água é uma merda escrota. Foi uma das piores e mais bizarras semanas da minha vida, mas aquele definitivamente foi um dos melhores momentos de todos. Em que cada gota de água era realmente uma gota de água, não só parte de um contexto rotineiro e automático chamado banho. Eu podia senti-las todas limpando o meu corpo.

DIA 7

Finalmente. O último dia da minha empreitada. Até que não estava ruim, eu tinha tomado um ótimo banho no dia anterior. Em compensação, minha bexiga não me foi nada fiel e eu tive que me virar pra fazer xixi com o mísero resto de água que tinha sobrado. Até pensei em comprar outro galão, mas estava tão perto de voltar a contemplar a água saindo da torneira que me segurei. Durante a semana toda eu me senti podre. Meu humor fedia quase tanto quanto eu. Minha cara ficou amassada, como se eu tivesse acabado de acordar, e eu nem vou começar a falar sobre o meu cabelo, que coçava mais que picada de borrachudo.

É claro que essa experiência é a realidade de muita gente, que nunca teve acesso a água encanada. Também se tornou o cotidiano de moradores nos arredores da cidade, aqueles que foram cortados logo no começo do ano, quando a coisa começou a apertar lá na Cantareira. Ou melhor, a secar. Mas foi muito útil pra mim – e talvez seja pra você – perceber como é foda pra caralho não poder lavar a mão na torneira quando você a suja de qualquer coisa. Ou não poder dar aquela descarga salvadora depois de uma bela cagada. Chegarmos tão perto assim de sujeitar quase 50% da população paulista a passar por isso é, no mínimo, bastante irresponsável. Espero que os responsáveis por isso deixem a galera tomar um banho amigo quando a coisa ficar feia de verdade.