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O Estranho Legado dos Protestos na Ucrânia

Visitamos Kiev para capturar o legado dos protestos do movimento pró-europeu que deram lugar à agitação política atual em toda a Ucrânia. O que nós encontramos foram atrações turísticas e um comércio em expansão.

Euromaidan, você deve se lembrar, é o nome de um movimento político vagamente organizado que começou quase um ano atrás na Praça da Independência de Kiev, Ucrânia. A exigência deles era uma maior integração com a Europa, o que significaria um distanciamento de Putin, que, por sua vez, significou a derrubada da administração do presidente Viktor Yanukovych. Os protestos acabaram em violência e, finalmente, na Revolução Ucraniana de 2014.

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Da capital ucraniana, esse clima violento migrou para o leste do país, e a mídia mundial o seguiu. Bombardeios e aviões derrubados são mais fáceis de vender na primeira página do que os manifestantes restantes em Kiev. Um presidente à la Willy Wonka foi eleito com promessas pró-Europa, mas o movimento Euromaidan continuou acampado no centro da cidade. Muitos dos que permaneceram lá foram estigmatizados como vagabundos e marginais – o tratamento à moda Occupy. Nas últimas semanas, a maioria dos acampamentos na Maidan Nezalezhnosti foram desocupados num esforço de “embelezamento”, uma tentativa um tanto mesquinha de atrair algum turismo legítimo de volta para Kiev. Hieronymus Ahrens fotografou o local para a VICE um pouco antes do êxodo forçado, descobrindo que o lugar era uma grande bagunça. Durante minha visita, eu queria saber a resposta para uma pergunta simples: qual será o legado do Euromaidan?

A primeira parada do meu tour de instabilidade política foi a Residência Mezhyhirya, a opulenta mansão do presidente deposto Viktor Yanukovych, agora convertida numa atração aberta a todos que apoiaram o movimento Euromaidan. Logo depois da violência de fevereiro, surgiram fotos de manifestantes eufóricos marchando até a mansão e desfrutando dos banheiros dourados e das jacuzzis king-size de Yanukovych. Essa foi uma das primeiras histórias positivas a vir de Kiev em meses, e, por um momento, o mundo pensou que a Ucrânia conseguiria resolver tudo sozinha.

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A crise na Crimeia começou mais tarde naquele mesmo dia.

Duas senhoras de meia-idade estavam vendendo os ingressos numa banca em frente à propriedade. Um cartaz ali dizia “Curta a gente no Facebook”. Máquinas de algodão-doce, aluguel de Segways e um trenzinho de shopping foram montados nas proximidades. Senti-me um menino indo a um parque de diversões pela primeira vez.

A entrada custava alguns dólares. Perguntei se estudantes tinham desconto, já que o movimento Euromaidan foi fundado por eles. Faria todo sentido. Mas não, sem desconto.

No topo da mansão, a bandeira vermelha e preta do Setor Direito (um partido nacionalista militarizado ucraniano) tremulava ao lado de uma bandeira esfarrapada da Ucrânia. Música pop nacional tocava no pátio do terceiro andar. Fiquei imaginando o tipo de festa que Yanukovych dava aqui.

O lugar estava lotado. Turistas ucranianos sorriam e tiravam selfies. Uma sensação de patriotismo pairava no ar, assim como um certo desgosto pela ostentação do estilo de vida do ex-presidente.

Os prédios propriamente ditos da propriedade estavam fechados – selos carimbados cobriam todas as portas. Um cartaz dizia que um passeio guiado pelo interior custava 200 UAH (cerca de US$ 20). Considerando que a renda média do ucraniano é de menos de US$ 400 por mês, o preço me pareceu uma ostentação por si só.

Equipes de manutenção continuam trabalhando diariamente na propriedade limpando os lagos, cortando a grama do campo de golfe e tirando o mato dos jardins. Alguns dos funcionários disseram que trabalhavam aqui antes do Euromaidan e que continuavam agora. O guarda do Setor Direito no local me informou que o salário dos trabalhadores vinha de impostos.

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Na viagem de ônibus de 30 minutos de volta a Kiev, fiquei pensado em todos os ucranianos felizes que tinham ido até a mansão como passeio de final de semana e nos capangas militares que agora operavam o estranho parque temático. Isso foi tudo que restou do Euromaidan?

Pilhas de escombros em Kiev me forçaram a reconsiderar: pneus derretidos, blocos de concreto despedaçados, carros queimados e escudos da tropa de choque partidos foram empilhados e usados para construir acampamentos militarizados.

Alguns turistas estavam presentes nesse labirinto de destruição passeando em seus vestidos de verão e calças cáqui. Um manifestante armado sorriu e disse que cobrava US$ 5 por uma foto com ele. Nacionalistas esfarrapados olhavam por cima da TV, onde assistiam a um jogo de basquete, para ver a fila cada vez maior numa banca de sorvete próxima. Uma mulher carregando pombas subia e descia a rua, que ainda mostrava as marcas de bala dos franco-atiradores. Ela chamou alguns turistas para tirar fotos com os nacionalistas, só para variar.

Outras barracas vendiam papel higiênico com o rosto de Putin e outras lembrancinhas irônicas. Um membro do Setor Direito estava de guarda numa torre de observação próxima. Olhando por cima dos óculos de aviador, ele sorriu e acenou quando tirei uma foto dele.

Andei até uma das barracas e puxei conversa com uma manifestante chamada Natalie. Ela estava ansiosa para contar sua história para um falante de inglês. Ela era meio que a líder de um grupo de refugiados de Donetsk: não manifestantes, veja você, mas pessoas deslocadas em seu próprio país, morando no meio de uma praça sem ajuda do governo ou de ONGs, porque não tinham mais aonde ir. Eles queriam lembrar o governo de que ainda existem contas a acertar do Euromaidan. Sentamo-nos para tomar um chá, e ela me contou que tinha vindo logo no começo dos protestos. Quando os infames rebeldes russos se infiltraram no leste, ela percebeu que não era mais bem-vinda em casa. Ela tinha dois diplomas universitários e estava trabalhando num terceiro em Oxford. Ela ensinava música e inglês. Ela tinha se casado no palco da Euromaidan com um colega manifestante em fevereiro. Ela cozinhava, limpava e agia como mãe dos 20 e poucos caras mais novos que moravam na barraca de Donetsk.

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Enquanto conversávamos, outros residentes se aproximaram. Um garoto de roupa camuflada de uns 20 anos interrompeu para dizer em inglês que “Maidan continua aqui, porque precisamos de controle”. Ele contou que tinha fugido de Donetsk em janeiro, mas que estava contente com sua vida atual. Quando perguntei se ele se incomodava com os turistas, ele disse “Não temos nada a esconder” e apontou para a pulseira que estava usando, onde se lia “FUCK U PUTIN”, como para voltar ao assunto.

Outro cara entrou na conversa. “Todo o mundo ocidental deve perceber que o objetivo de Putin agora não é apenas o leste da Ucrânia; é todo lugar do mundo onde as pessoas não apoiem as opiniões dele.” Seu rosto tremeu quando ele afirmou: “Aqueles que não pensam como ele devem ser destruídos”. O resto do grupo concordou melancolicamente.

Um homem mais velho enfiou a cabeça para fora da barraca para ver minha cara de “obviamente não sou daqui”. Ele me olhou com desprezo e começou a grunhir alguma coisa em ucraniano. Entendi a palavra “terrorista”, e o resto do pessoal começou a rir.

“Ele acha que você é um terrorista, como os russos. Ele está lembrando da Guerra Fria”, explicou Natalie.

“Não se preocupe. Agradeço seu presidente. Nunca achei que nenhum presidente ajudaria o Maidan”, ela frisou, se referindo às sanções recentes que afetaram severamente a economia russa.

Natalie achava que mais de 3 mil pessoas continuam vivendo na praça. E mesmo que alguns fossem membros do Setor Direito ou do Svoboda, a maioria era de refugiados.

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“Não é apenas Donetsk; é a Crimeia, Lugansk, todos esses Estados”, destacou. “Ontem, eu estava falando com uma mãe [cujo filho tinha sido morto em Donetsk]. Entendi que o filho dela estava morto; mas ela, não. Foi um momento muito difícil.”

Terminei meu chá e me despedi. Quando eu estava indo, alguém gritou: “A propaganda russa diz que as pessoas na Maidan são alcoólatras e viciados. Eles dizem que comemos criancinhas! No leste da Ucrânia algumas pessoas acreditam nisso!”.

Natalie balançou a cabeça e disse: “Somos gente normal”. Um turista tímido, de chapéu cata-ovo, apareceu e pediu para tirar uma foto do grupo. Ele sorriu, o flash piscou, ele falou “obrigado” e continuou com suas férias.

A mesma mão que usava a pulseira “FUCK U PUTIN” apontou aonde o turista estava indo. “400 pessoas morreram ali”, ele informou.

A história de Natalie e dos outros refugiados é um lembrete de como a situação na Ucrânia era fodida – provavelmente ainda é. Kiev está tentando voltar ao normal dizendo que o Euromaidan deve seguir em frente, mas são ações assim que levam turistas a monumentos absurdos do conflito como a Residência Mezhyhirya. Claro, o Euromaidan tem muitos lados, mas, pelo amor de Deus, espero que o movimento não seja lembrado por algodão-doce e trenzinhos.

Veja mais fotos do Sam Koebrich no site dele.

Tradução: Marina Schnoor