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Vice Blog

Passei o Dia com um Homem que Diz Ter Sido Esfaqueado 13 Vezes

Conheça as histórias de ninar dos sem-teto mais barra pesada de São Francisco.

Esta é uma série de quatro textos que mostra a vida da grande população dos sem-teto de São Francisco, pessoas que vivem à margem de uma das cidades mais ricas dos EUA. Clique aqui para ler a parte um e a parte dois

Jeff nasceu em Fontana, na Califórnia, lar dos autênticos Hell’s Angels. “Chamavam isso aqui de Felony Flats desde que eu era moleque”, conta. “Tive de brigar pelo meu skate, minha bicicleta, tudo, cara.” De todos os cômodos em que estive até agora, o de Jeff é o mais expressivo. Cada pedaço parecia uma parte do cara: das cartas de baralho de zumbi stripper, passando por caveiras de cera derretida, até chegar às pranchas de skate detonadas, todas presas na parede como prateleiras.

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O cômodo em si é um quarto de 2 por 3 metros quadrados na esquina da Market Street com vista para o Yerba Buena Redevelopment Project. Jeff vive ali desde que saiu da prisão em 2005.

Tudo parecia emanar dele como ondas enormes. De sua garganta coberta de tatuagens, saíram longas e sinuosas histórias narradas numa voz rouca enquanto os braços cheios de cicatrizes seguravam uma ou outra peça icônica: um troço lubrificador, um dente de ouro, uma foto gasta de sua mãe. Jeff é claramente problemático, de muitas maneiras, mas estamos compartilhando sua história como um lembrete das duras realidades que muitos dos sem-teto enfrentam diariamente.

VICE: Onde você arranjou essa cicatriz?
Jeff: Essa eu consegui numa loja de rosquinhas na esquina da Seventh com a Market. Tatuei por cima dela.

Quantas você tem?
Cara, fui esfaqueado umas 13 vezes. Tenho 50 anos e já devia ter morrido umas cinco vezes até agora.

Como você foi esfaqueado tantas vezes assim?
Por estar cagando e andando [tossida forte e risadas].

Como foram os seus pais?
Fui criado pela minha mãe, porque meu pai era muito louco. Às vezes estava brincando no carro dele e achava uma arma debaixo do banco. Mas o lado da família do meu pai mexia com umas paradas que não devem ser escritas, e eu amo muito a minha mãe. Sou um filhinho de mamãe, mas meu pai é metade dinamarquês, então tenho um pouco de sangue viking. Desde que era bem pequeno tinha uns apagões. Via tudo vermelho. É tudo bem ruim.

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Você foi à escola?

Não, fui expulso da Fontana School District quando tinha 15 anos. Cara, minha ficha era longa. Mas quando eu era criança queriam me colocar na classe dos superdotados, por isso eu lia Milton, O Inferno de Dante, Nietzsche. “Uma alma plena e poderosa não apenas lida com as perdas, roubos ou privações dolorosas. Ela emergirá daqueles infernos com ainda mais plenitude e poder”, Nietzsche, 1888 [mais tosse]

Tudo está sujeito à nossa percepção e em grande medida somos um produto do nosso ambiente. Cresci em Fontana, na sujeira, entre ervas daninhas, pedras e cães. Em algumas ruas você nem pode passar com a sua bicicleta, porque tem um pitbull chamado Satan que vai, cara, te rasgar em pedacinhos. Então mudar pra Marin foi um grande choque cultural, e eu costumava vir aqui pra Frisco (São Francisco). Costumava alugar quartos no Columbus, na esquina da Golden Gate com a Columbus, bem aqui na esquina, e pagar, tipo, US$ 12 por noite.

Quanto custa seu quarto agora?
Pra mim? Meu amigo me colocou aqui, o Seamus. Um cara fera, mas ele tá morto agora. Pago um pouco com a minha renda, mas agora estou em licença de invalidez porque minhas costas estão destruídas por trabalhar em telhados. Também porque eu andei no guidão a mais de 100 km por hora, na quinta marcha. E por jogar futebol americano, fui esmagado duas vezes.

Esmagado?
Costumávamos bater cabeças, sabe? Pra ver quem conseguia deixar os capacetes mais marcados. Se você visse o capacete de alguém cheio de cores e amassados, você saberia que ele era um batedor. E eu era da defesa, era um monstro. Mas, se você não estiver com a cabeça pra cima, estiver com ela pra baixo, sua coluna vai ser comprimida e suas vértebras vão sair do lugar. Isso é ser esmagado. Tive oito vértebras deslocadas na primeira vez, e cinco na segunda. Mas eu curtia bater cabeças.

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Jeff mostra uma cicatriz de facada.

Quando você veio a São Francisco?
Por volta de 1981. Quando vim pra cá, gerenciava um prédio de apartamentos e vendia heroína na esquina da Hyde com a Eddy. Foi onde eles fizeram o pornô.

Pera, o quê?
Sim, fiz um pornô com a Ellie Mae pro ForbiddenSex.com e fiquei, tipo: “Se eu morrer hoje, morro feliz”. Mas lembra quando Gavin Newsom começou a alojar todos os sem-teto? Ele estava em pessoa na Seventh com a Market e eu só queria dizer: “Olá, obrigado por tudo o que você fez pelos sem-teto, você fez muito pelos meus amigos, blá, blá, blá”, e ele disse: “O que posso fazer por você?”, e eu fiquei chocado. Disse pra ele: “Estou na rua, picado de heroína, dormindo na calçada e eu preciso de um teto e de metadona”. Então ele ligou para o Homeless Outreach Team e disse: “Estou mandando um cara praí”. Fui pra lá e meia hora depois estava numa van. Eles estavam me levando para o teatro Warfield. Fiquei lá por um mês ou dois. Então recebi uma receita nova, tomei seis Somas e seis Phenergans e acordei numa casa na Marina e foi quando tudo ficou péssimo. Ganhei um número novo da prisão aos 40.

O que aconteceu com você?
Bom, meu carro foi roubado com todos os meus suprimentos e dinheiro do negócio do prédio. E eu estava tomando medicamentos. Eu dava uns picos de heroína e tomava uns drinks. Quando fui ver tinha acordado no chão. Olhei pra cima e vi dois desses guardinhas de trânsito olhando pra mim. Tentei me levantar e caí no chão outra vez. A polícia apareceu, buscou meu nome, viu que eu tinha um mandado e me levou.

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Pelo quê?
Tinha um mandado em Marin por porte. Lá, fiquei sem dormir por 38 dias. Foi quando contei ao meu antigo amigo, Dave, chefe do departamento de condicional: “Dave, não vou mentir pra você, mas eu tô mal e preciso sair”. Ele falou pro juiz: “Excelência, não sei como isso vai soar, mas eu conheço este homem pessoalmente há 20 anos. E ele tem coisas importantes que precisa fazer e eu fico responsável por ele”, e ele me tirou de lá. Nessa altura eu usava metadona também, porque estava usando 4 gramas de heroína por dia, só pra ficar bem. Conseguia uns US$ 25 por meia grama, então esse era um hábito de uns US$ 200 por dia, no mínimo.

O que você fez depois de sair?
Vim pra cá, me reencontrei com a minha mãe, fique sóbrio. E tenho estado sóbrio. Era só uma coisa que eu precisava fazer. Não sou mais criança. E é um hábito caro [muitas risadas]. Acho que já fazem uns nove anos. Uau. Nunca tinha pensado sobre isso. Cara, eu tinha uns 70 quilos e seis dentes. Agora tenho um de ouro!

Qual foi a pior coisa que você já viu aqui?
Tem uma banheira no fim do corredor… algumas pessoas morreram lá. Meu amigo Jack morreu nesse quarto. Porra, quando eu estava gerenciando os apartamentos na Hyde com a Eddy, e Melissa não via um cara há umas duas semanas, e falou: “Vamos lá ver o que se passa com ele”, e eu fui ao quarto dele e tinha uma daquelas camas Murphy dobráveis e eu vejo os pés dele saindo pra fora, tipo: “Ai, merda”. E o maluco ainda tava vivo! Os paramédicos disseram que ele falou alguma coisa sobre os Giants na ambulância e depois morreu. Ele ficou lá por tanto tempo que quando levantaram seu braço tinha um machucado ali. Já vi muita merda na vida.

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Alguma overdose?
Salvei algumas; você só precisa respirar por eles, esse é o truque. Pôr a cabeça pra trás, fechar o nariz, colocar a boca na boca da pessoa e soprar muito forte nos seus pulmões. Tive que soprar dentro da boca do Rigo por quatro horas pra mantê-lo vivo. Ele cheirou feito um trem desgovernado e seu coração batia muito forte e de repente devagar, e ele desmaiava de novo. Ele queria que eu fizesse uma dose pra ele, então eu fazia, sabe? Consistia em 80 mg e um pouco de óleo. Ele foi lá e tomou. Cara, ele era meu melhor amigo, trabalhava pra mim e tinha a chave da minha casa. A mãe dele me ameaçava como se fosse família mesmo, me chamava de mijo. Eu era como um filho pra ela. Mas um outro amigo meu entrou numa briga; vi ele ser baleado no coração com uma Uzi.

Onde se consegue uma Uzi? O que aconteceu?
Em qualquer lugar, porra: Chinatown, Bayview, East Bay, Oakland. Mas, então, tava rolando uma festa, e o filho da Shirley tava tentando dormir, e o Adam e o Stash meio que começaram uma briga, então o Rabbit aparece com essa Uzi e ele não dormia há uns dez dias. O cara aponta a Uzi no peito do Stash e diz: “Cala essa porra dessa boca e vaza, falou?”. O Stash segura na arma, tira a trava e fala: “O que você vai fazer agora, maluco?”. Aí o Adam foi lá e “pow”, atirou bem no coração dele, que caiu pra trás. A cabeça dele bateu com muita força na parede. Fui até ele, olhei nos seus olhos e ele já não estava mais lá.

Porra. E depois?
As mulheres começaram a gritar, a chorar e a espernear. As pessoas se esconderam por todos os lados. Os filhos do Jason todos chorando, e eu: “Cara, cala a boca, enfia o dedo no buraco, estanca o sangue”. (risos) Nem estava sangrando, eu só estava sendo babaca. Liguei pro 911 com a unha, peguei as caixas de cerveja na geladeira, limpei minhas digitais de tudo, sabe, e me escondi em SoCal por três anos, porque queriam que eu testemunhasse. Mas claro, foi fodido ver o Stash levar um tiro. Ele tinha muito potencial. Ver gente ter overdose, levar tiro, ser esfaqueado … só maravilha. A coisa fica preta em alguns desses lugares.

Isso é pesado, cara.
Vou te contar, tive uns altos e baixos, mas os baixos fazem os altos parecerem muito mais altos. E agora, na minha vida, cara, estou fazendo as coisas do meu jeito. Estou mesmo. Estou envelhecendo, não estou bebendo, estou sóbrio, estou fazendo o que quero fazer. Às vezes pego meu skate no domingo, quando as ruas estão fechadas e vou por aí. Essa coisa voa.

Na próxima parte, falamos com um residente de SROs que alega ter o recorde de tentativas de arrombamento bem-sucedidos do estádio de baseball do San Francisco Giants.

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